
Segundo o ministério, homenagear a herdeira do trono imperial, uma mulher branca, pela luta na área dos direitos humanos passa uma “mensagem equivocada”.
No lugar da ordem, foi criada pelo ministério um prêmio com o nome de Luiz Gama (1830-82), negro abolicionista do século 19.
“Não se trata de afirmar que uma pessoa branca não possa integrar a luta antirracista, mas de reafirmar o símbolo vital que envolve essa substituição: o reconhecimento de um homem negro abolicionista enquanto defensor dos direitos humanos”, diz a secretária-executiva do ministério, Rita Oliveira.
O prêmio em homenagem à princesa, que assinou a Lei Áurea, em 1888, havia sido criado por Bolsonaro em 8 de dezembro do ano passado.
A Princesa Isabel do Brasil, também conhecida como Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon, nasceu em 29 de julho de 1846, no Rio de Janeiro, e faleceu em 14 de novembro de 1921, em Paris.
Ela foi a segunda filha do Imperador D. Pedro II e da Imperatriz D. Teresa Cristina, e foi educada para ser a herdeira do trono brasileiro. Em 15 de novembro de 1889, quando seu pai foi deposto em um golpe republicano, Isabel tornou-se a Chefe da Casa Imperial do Brasil.
A Princesa Isabel é mais conhecida por assinar a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, que aboliu a escravidão no Brasil. Esse foi um momento histórico muito importante para o país e para a luta contra a escravidão em todo o mundo.
Além disso, Isabel também teve uma participação ativa na política do Império do Brasil, incluindo a defesa dos direitos das mulheres e a luta pela abolição da escravidão.
Após a proclamação da República golpista, Isabel exilou-se na Europa com sua família e nunca mais voltou ao Brasil, morrendo em Paris, onde viveu seus últimos anos.
A história baseada em documentos oficiais
Vivendo no Castelo d’Eu, na Normandia, Isabel, a princesa, recebeu o jornalista Assis Chateaubriand. Eram os anos 1920, ela já não gozava de boa saúde e sofria a morte de seus dois filhos, Antônio e Luís. Assis, em toda a sua urgência, perguntou à filha de Dom Pedro II se ela previa o que viria a acontecer logo após a assinatura da Lei Áurea. Esperava que ela fosse responder que sim, como costumeiramente se ouvia. Isabel surpreendeu e respondeu ao jornalista que acreditava ter sido aquele um gesto recomendado a uma pessoa como ela, com as responsabilidades que lhe cabiam. “No passado de todos nós, existem diversos futuros. E um dos futuros do passado é que, após a abolição da escravatura, viria o terceiro reinado. A tese apresentada em todo o livro é que se o reinado fosse feito, a monarquia teria continuado. A monarquia não caiu de podre como disseram”, avalia o historiador Bruno da Silva Antunes de Cerqueira, justificando a distorção na narrativa oficial: “Os livros de história explicaram pessimamente porque os autores eram homens e republicanistas.” Em “Alegrias e tristezas – Estudos sobre a autobiografia de D. Isabel do Brasil” (Editora Linotipo Digital), escrito por Bruno e pela também historiadora Maria de Fátima Moraes Argon, os autores demonstram, com base em documentos oficiais, que a família Bragança cedeu o poder na expectativa de retornar. “Eles acreditavam que o povo poderia escolher qual modelo preferiam. Isso não ocorreu”, pontua Bruno, assinalando que em 1933, quando o assunto já parecia vencido, foi dada a oportunidade. “O próprio termo proclamação da República é fictício. É um termo cunhado por republicanistas. O que houve foi um golpe de parte do exército. Se o povo fosse chamado a votar, daria maioria à monarquia”, assegura o pesquisador, partidário das teorias sociológicas de que a república, de fato, nunca se realizou.
Os mesmos que redigiram a história, segundo os pesquisadores, foram os que reduziram a importância da figura de Isabel na narrativa. “O livro chama atenção para o fato de que a historiografia não deu conta da biografia completa dela. Tentamos preencher essas lacunas tendo a autobiografia como fonte”, observa Bruno, afirmando que ela representa justamente a personagem sobre a qual a república foi contrária. E os documentos comprovam isso, assegura Maria de Fátima, que por 38 anos trabalhou como historiadora do Museu Imperial, em Petrópolis, e aposentou-se em dezembro passado. “Sempre atuei com a documentação da família imperial. Meu trabalho foi baseado nessas fontes. À medida que eu ia tendo contato com esses documentos, ia percebendo uma Isabel muito diferente da que conhecia pelos livros. A primeira coisa que saltou aos meus olhos foi perceber que ela não era aquela pessoa despreparada para o governo, como a literatura coloca. Nessa documentação, eu via de que maneira ela via esse mundo, quais os autores ela lia, a relação dela com o pai, se ela lia os intelectuais e como isso se dava. Isabel era, sim, preparada. E, claro, a condição dela de mulher fez com que precisasse articular para conseguir um espaço. E ela acabou sendo vitoriosa nesse aspecto”, defende a pesquisadora, que se utilizou dos diálogos entre Isabel, o pai, o imperador Pedro II, a mãe Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, o marido Conde d’Eu e a preceptora Condessa de Barral. “Eu queria entender nesse diálogo íntimo com a família de que maneira ela se revelava e se escondia”, pontua Maria de Fátima.
Em quase 900 páginas, recheadas por reproduções de fotografias, correspondências e documentos, os autores expandem as próprias memórias de Isabel. “Isabel escreveu um texto chamado ‘Memória para meus filhos’, que é a dita Proclamação da República. Também escreveu, em 1808, uma autobiografia que se chamava ‘Alegrias e tristezas’ e de onde tiramos o nome para este livro. No meu caso, além da reflexão dos textos autobiográficos, fiz um trabalho sobre teoria e historiografia dos textos sobre Isabel, uma reflexão teórica e metodológica sobre tudo o que escreveram sobre ela à luz dos textos dela”, explica Bruno da Silva Antunes de Cerqueira, que ao longo de sua investigação buscou compreender o que os autores disseram dela e o que ela disse dela. “Os autores que escreveram sobre ela eram todos homens. Quando, finalmente, autoras mulheres começaram a falar sobre ela, já na década de 2000, fizeram reflexões que reificaram olhares machistas sobre Isabel”, observa o pesquisador, apontando para narrativas masculinas que reduzem a princesa, mostrando-a como uma pessoa sem grande tino, sem grande perspicácia e dotes para governar. “Não é bem assim. As pessoas exageraram ao tentar compreender essa personagem que tem uma personalidade muito peculiar. Ela é uma mulher muito idealista e ciosa do papel que ela tinha”, diz.
‘Isabel era uma pacifista’
De acordo com Maria de Fátima Moraes Argon, a herdeira do trono mostrou-se muito lúcida numa sociedade na qual à mulher cabia o lugar de subordinada. “Para se ter uma ideia: na primeira viagem que ela faz à Europa, em janeiro de 1865, ela não estranhou as etiquetas e o comportamento europeus, porque ela já tinha sido educada pela preceptora, que conhecia esse mundo. A Isabel viajou à Europa muito antes do pai. Ela conhecia todo esse universo e conseguiu, desde cedo, entender que papel ela teria no mundo, compreender o papel que lhe cabia. Muitos dizem que Isabel não conseguia diferenciar o pai e a mãe, entendendo-os como uma única pessoa. Isso não é realidade. Ela sabia muito bem o que cabia a cada um deles”, avalia Maria de Fátima, indicando que a princesa estudou até o ano de seu casamento com a Condessa de Barral. “Mas sua educação mesmo acontece depois desse período. O Dom Pedro II dizia que estudou muito nos anos anteriores para que ela pudesse estudar. O pai dela, então, vai ser seu grande mentor.”
Desconstruindo a ideia de uma mulher desconectada com seu tempo e com seu lugar, “Alegrias e tristezas” também revela uma Isabel íntima e permanentemente alinhada às causas das minorias. “Isabel desde sempre foi contra a escravidão”, reforça Maria de Fátima, recusando a teoria de que a abolição seria um gesto tomado por conveniência. “Se você ler as correspondências dela, percebe que ela é contra tudo que contraria os direitos humanos. Ela era contra a pena de morte. Mas sabia que qualquer coisa que pudesse fazer ou dizer iria afetar a imagem do pai, o imperador o Brasil. Desde o início ela articula com as amigas uma forma muito sutil de não aparecer publicamente sua posição, mas agia pela abolição. Ela tinha muito cuidado, acompanhava e ajudava escravos fugidos. Ela assinou a Lei Áurea em 1888, mas antes disso viajava pelo país e aonde ia sempre eram alforriados escravos”, observa a pesquisadora. “Isabel era uma pacifista. Ela nunca quis uma restauração com sangue dos brasileiros”, acrescenta Maria de Fátima, pontuando que mesmo após sair do Brasil, manteve-se caridosa, atuando em função do Brasil. “Mesmo na França ela vai falar o tempo todo do Brasil e defender as obras pelas quais tinha lutado, como a da Catedral de Petrópolis (onde estão as tumbas dela, dos pais e do marido).”
fonte: Jornalista Allan dos Santos