Veteranos da FEB viveram anos de abandono após vitória em Monte Castelo

Veteranos da FEB viveram anos de abandono após vitória em Monte Castelo

Ricardo Westin

Publicado em 7/2/2025

O Brasil se prepara para comemorar o 80º aniversário de uma das maiores façanhas militares de sua história. Em 21 de fevereiro de 1945 — uma quarta-feira gélida do inverno europeu — os soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB), auxiliados por caças da Força Aérea, tomaram Monte Castelo, no norte da Itália.

Fazia meses que a montanha estava ocupada pelas tropas de Adolf Hitler. As quatro tentativas anteriores de expulsar os inimigos haviam fracassado. Dois meses depois da tomada de Monte Castelo, a Alemanha nazista se renderia, pondo fim à Segunda Guerra Mundial na Europa. O Japão ainda prolongaria a guerra na Ásia.

Documentos da época guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que as proezas dos combatentes brasileiros — mais conhecidos como “pracinhas”, ou expedicionários — imediatamente viraram motivo de orgulho nacional. Em fevereiro de 1946, a Assembleia Nacional Constituinte dedicou uma de suas primeiras sessões aos veteranos da guerra. O deputado constituinte Claudino Silva (PCB-RJ) discursou:

— Esses heróis da pátria, filhos do povo, selaram com seu sangue nossa aspiração de sepultar para sempre os horrores do fascismo. Evocamos, por isso, com orgulho patriótico nossos brilhantes feitos contra as armas hitleristas, quer em Monte Castelo, Castelnuovo, Montese ou Zocca — celebrou ele, citando outras batalhas em que os brasileiros tomaram parte.

Na mesma sessão, o deputado Flores da Cunha (UDN-RS) contou ter chorado numa palestra em que um oficial da FEB narrou com detalhes a tomada daquele reduto nazista:

— O primeiro assalto a Monte Castelo fracassou, mas, renovado no dia seguinte, ou daí a alguns dias, quando a nossa tropa galgou o cume da montanha, foram encontrados pela encosta acima os cadáveres de oito ou dez brasileiros que até lá haviam chegado na primeira investida. Quando ouvi essa narrativa, experimentei emoção até as lágrimas. O homem brasileiro, em qualquer latitude, é sempre um bravo!

Soldado brasileiro participa da ofensiva em Monte Castelo; e capa do jornal O Cruzeiro do Sul, da FEB, noticia a tomada do “Morro do Castelo”
(Reprodução/Ministério da Defesa e Biblioteca Nacional)

A participação do Brasil na guerra mais sangrenta de todos os tempos permaneceu no imaginário dos brasileiros por muitos anos. Em 1959, o senador Caiado de Castro (PTB-DF) lembrou de sua própria atuação na Itália, como coronel, comandando os ataques a Monte Castelo.

— Foi o meu regimento, o glorioso Regimento Sampaio, aquele que maiores baixas sofreu durante a guerra. No primeiro assalto a Monte Castelo, perdeu 33% do seu efetivo e continuou na luta. No Exército francês, a perda de 10% era considerada grande, determinando, não raro, a retirada do contingente em operações. Do meu regimento, baixaram aos hospitais da Itália 1.150 homens feridos por bala. Dos [457] mortos da FEB, 188 a ele pertenciam, além de 98 mutilados.

O presidente Getúlio Vargas enviou para a campanha da Itália 25 mil combatentes, que foram divididos em cinco grupos para atravessar o Atlântico e o Mediterrâneo. O primeiro partiu do Rio de Janeiro em julho de 1944. Embora a FEB tenha permanecido na Itália por pouco mais de um ano, até setembro de 1945, os expedicionários estiveram nos campos de batalha propriamente ditos ao longo de oito meses, de setembro de 1944 a abril de 1945.

Como não tinha nenhuma experiência de guerra, a FEB atuou na campanha da Itália sob o treinamento e o comando dos Estados Unidos. Apesar de o protagonismo ter sido dos brasileiros, os norte-americanos também participaram da conquista.

A vitória em Monte Castelo foi importante porque os brasileiros e os norte-americanos estavam parados naquela posição havia três meses, sem conseguir avançar, o que dava liberdade de ação aos alemães em praticamente toda a região italiana localizada ao norte do monte.

Em 1943, quando o líder fascista Benito Mussolini foi deposto, a Itália abandonou os nazistas e passou para o lado dos Aliados (Grã-Bretanha, França, União Soviética e Estados Unidos). Hitler, em reação, invadiu o novo inimigo.

Os Aliados, então, agiram para livrar os italianos do jugo nazista, avançando do sul para o norte. Quando os brasileiros chegaram para engrossar a frente aliada, Roma já estava livre. Os expedicionários lutaram no norte, buscando empurrar os alemães para fora do país.

A FEB libertou em torno de 50 localidades italianas. A última a ser tomada dos nazistas, em 29 de abril, foi a pequena Fornovo di Taro, onde nada menos que 15 mil soldados inimigos se entregaram aos brasileiros. A Alemanha se renderia incondicionalmente aos aliados em 7 de maio.

O Brasil foi o único país da América Latina a combater na Europa. O México também se envolveu na Segunda Guerra Mundial, mas seus soldados lutaram nas Filipinas.


Vídeo da Agência Senado conta a história da FEB, desde a criação até o retorno ao Brasil

Os papéis históricos do Arquivo do Senado, no entanto, revelam que, apesar de todo o heroísmo, os expedicionários foram praticamente esquecidos e abandonados pelo governo brasileiro assim que a Segunda Guerra Mundial terminou.

Em 1958, passados 13 anos do fim da guerra, Caiado de Castro denunciou aos colegas senadores:

— Inúmeros ex-combatentes me procuram diariamente em minha residência, no Senado e na sede do partido a que pertenço solicitando amparo, porque continuam passando necessidade, sem poderem angariar os meios de subsistência para suas famílias. Deles tenho recebido vários pedidos, até de modestos empregos, como o de gari da limpeza pública. Nesse sentido, tenho me dirigido ao prefeito do Distrito Federal [hoje cidade do Rio de Janeiro (RJ)]. Sei que me torno imprudente com as constantes solicitações, mas é a minha obrigação.

Vargas e seus sucessores na Presidência da República não se preocuparam em desenhar uma política pública consistente e abrangente para reincorporar os antigos combatentes à sociedade. Dos civis recrutados, muitos não encontraram trabalho quando regressaram para casa. Acreditava-se que eles não eram capazes nem confiáveis porque seguramente tinham “neurose” — o que hoje se conhece como transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

Além disso, o governo não concedeu imediatamente aos veteranos nenhuma pensão, ainda que tivessem ficado incapacitados em razão da tal “neurose” ou de alguma deficiência física adquirida nos campos de batalha, como um braço mutilado ou um olho cego.

Numa sessão da Assembleia Nacional Constituinte de 1946, o deputado Caires de Brito (PCB-SP) resumiu:

— Os ex-combatentes se encontram verdadeiramente num estado de semiesquecimento.

O colega Flores da Cunha acrescentou:

— Não pretendo traçar diretrizes ao governo, mas lamento que até agora não se tenha procurado premiar aqueles que foram a terras estranhas para morrer pelo Brasil. Sei de uma infinidade de expedicionários jovens, alguns de 20 anos, outros de menos, que se acham em completo abandono pelos vários estados.

Soldados da Força Expedicionária Brasileira posam com seus armamentos e munição
(Agência Nacional/Arquivo Nacional e Exército Brasileiro)

Em outra sessão da Constituinte, Claudino Silva deu exemplos concretos do descaso governamental:

— O ex-combatente Mondino Hamilton Ilha, tuberculoso, teve alta do Hospital Militar de Belém. Mas, como não estava curado, teve que recorrer a particulares para obter o seu internamento, já que lhe negavam as autoridades a assistência necessária. O ex-combatente Vespio Manelli, recolhido à enfermaria do Hospital Central do Exército [no Rio de Janeiro], foi transferido para o Pavilhão de Neuróticos e Psicopatas por ter reclamado da pouca assistência ministrada aos enfermos.

O deputado prosseguiu:

— O caso do soldado [Édson] Jatobá é o mais doloroso. Vive esse herói da pátria num leito do Hospital Central do Exército, com a espinha quebrada e a pele colada nos ossos, como um espectro fugido de um campo de concentração. Entrevistado por um jornalista, teve o soldado Jatobá a ideia de reclamar das tristes condições em que se encontra. O resultado é que um oficial, irritado com as declarações, teve a coragem de insultá-lo e castigá-lo, como se ainda vivêssemos nos tempos de Hitler e Mussolini.

Silva concluiu fazendo uma comparação:

— Em países democráticos e avançados, os ex-combatentes têm direitos líquidos e assegurados e todas as honrarias. Assim acontece na América do Norte, na Inglaterra, na União Soviética, na Iugoslávia, na França. Mas, entre nós, não há ainda uma legislação que ampare os ex-combatentes, e as poucas leis existentes são incompletas e, mesmo assim, não se aplicam.

Não foram só os ex-combatentes de origem civil que sofreram no regresso da guerra. Os militares de carreira também enfrentaram dificuldades. Apesar de terem o emprego garantido, eles foram boicotados pelos colegas que haviam permanecido no Brasil durante o conflito. Estes se sentiram enciumados diante dos expedicionários, que chegaram sendo tratados como heróis, recebendo honrarias e ganhando prioridade nas promoções. Em retaliação, procuraram dar-lhes os trabalhos mais enfadonhos e transferi-los para os quartéis mais remotos e desimportantes do território brasileiro.

Em 1960, uma decisão do prefeito do Distrito Federal, Sá Freire Alvim, provocou indignação generalizada. Os parlamentares locais aprovaram uma lei isentando do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) tanto os veteranos da Itália quanto os futebolistas que venceram a Copa do Mundo de 1958. O prefeito aceitou a isenção aos atletas, mas vetou o benefício aos soldados, sob o argumento de que a medida seria prejudicial para os cofres públicos.

Mensagem em que o presidente Getúlio Vargas pede ao Congresso que aprove a liberação de verbas para a construção de um mausoléu destinado a abrigar os restos mortais dos expedicionários mortos na Itália
(Arquivo do Senado)

Com o intuito de oferecer ajuda material aos veteranos em dificuldades e pressionar o poder público a tomar medidas, os soldados criaram ainda em 1945 a Associação dos Ex-Combatentes do Brasil e, em 1963, o Clube dos Veteranos da Campanha da Itália (depois Associação Nacional dos Veteranos da FEB). As organizações tinham unidades espalhadas em praticamente todo o território nacional. Elas ainda existem e, embora sem a capilaridade do passado, dedicam-se a preservar a memória dos soldados.

Em 1960, o senador e ex-combatente Caiado de Castro disse:

— Enfileirei-me entre esses homens e tenho o orgulho de dizer que eu, homem pobre que vive exclusivamente dos seus ordenados, durante mais de dez anos registrei 10% do que ganhava para sustentar os pracinhas. As Associações dos Ex-Combatentes de Minas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e outros estados devem atestar que constam de seus anais o que puder fazer por esses homens, dos praças aos oficiais, dando-lhes sanatórios para tuberculosos, casas, tudo comprado a prestação, em benefício dos meus companheiros.

Segundo ele, o Estado brasileiro só se preocupou com os expedicionários que morreram na Itália, garantindo às suas famílias diferentes pensões, e deixou os sobreviventes de lado. O senador arrematou:

— Lamento somente [por] aqueles que não tiveram a ventura de morrer na guerra e voltaram ao Brasil para sofrer, pois a maioria deles está passando grande miséria.

Ao contrário dos soldados, o comandante da FEB, general João Batista Mascarenhas da Moraes — que fora escolhido para esse posto diretamente pelo presidente Getúlio Vargas — recebeu todas as homenagens públicas possíveis de 1945 em diante. Ele, contudo, procurou usar essa influência para obter do governo benefícios para os expedicionários.

Presidente Getúlio Vargas visita expedicionários antes do embarque para a Itália; e general Mascarenhas de Moraes, comandante da FEB
(Agência Nacional/Arquivo Nacional e U.S. National Archives/Wikimedia Commons)

Em 1952, em sua segunda passagem pela Presidência da República, Vargas apresentou à Câmara um projeto de lei liberando as verbas necessárias para a construção de um mausoléu destinado a abrigar os restos mortais dos expedicionários que ainda estavam sepultados na Itália. Os deputados, porém, acharam melhor economizar e mudaram o projeto, prevendo a reforma do Monumento ao Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, para que nele fossem depositados os restos mortais.

Furioso, Mascarenhas enviou uma carta aos senadores:

“Tendo a Comissão de Repatriamento, por diversas razões, de ordem histórica, militar, política e mesmo estética, decidido pela construção de novo monumento e tendo a Câmara dos Deputados alterado o espírito da mensagem presidencial, venho solicitar que seja restituída ao projeto a faculdade prevista na referida mensagem”.

Os senadores atenderam ao ex-comandante da FEB, e o Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, mais conhecido como Monumento aos Pracinhas, foi construído no Aterro da Glória, no Rio de Janeiro.

O senador Caiado de Castro não se deixou impressionar. Em tom de ironia, ele discursou:

— Está em construção o monumento aos heróis da FEB, que custará 300 milhões de cruzeiros. Servirá de abrigo aos namorados ou será o ponto onde irão esmolar os militares desprotegidos? Envergonho-me, senhores senadores, quando saio do Senado e encontro à porta um ex-soldado pedido 20 ou 30 cruzeiros para matar a fome.

Em 1960, as urnas dos mortos foram levadas do Cemitério de Pistoia, na Itália, para o novo mausoléu. O presidente Juscelino Kubitschek participou da cerimônia no Rio.

Cartaz do governo Vargas exalta a participação do Brasil na guerra; e soldados da FEB são saudados por moradores após a libertação de Massarosa
(Agência Nacional/Arquivo Nacional e Reprodução/Wikimedia Commons)

Apenas em 1967 o governo aprovou uma lei dizendo claramente quem eram os ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial e quais deles fariam jus a certos benefícios. Foram incluídos na lista os militares que ficaram no Brasil e, por exemplo, atuaram no monitoramento e na proteção da costa, ameaçada pelos submarinos nazistas.

Em 1988, a Constituição lhes concedeu novos direitos, como o aproveitamento no serviço público sem a necessidade de concurso e a prioridade na aquisição da casa própria. A Carta também estabeleceu que os veteranos passariam a receber uma pensão equivalente ao soldo de um segundo-tenente.

O historiador Daniel Mata Roque, um dos vice-presidentes da Associação Nacional dos Veteranos da FEB, explica que o poder público, na realidade, criou inúmeras leis, inclusive estaduais e municipais, favorecendo os expedicionários.

— A legislação produzida foi grande, mas por vezes nasceu de forma desordenada e não chegou a ser aplicada. Muitos veteranos morreram sem saber que tinham esses direitos — afirma Roque.

Segundo o historiador, uma das razões para o governo não ter elaborado uma verdadeira política pública para os expedicionários é o tamanho proporcional do contingente. Na época da guerra, o Brasil tinha 41 milhões de habitantes. Os 25 mil integrantes da FEB representavam, portanto, apenas 0,06% da população brasileira.

— Países como os Estados Unidos, a União Soviética e a Polônia tiveram ministérios específicos que tratavam dos assuntos relativos aos ex-combatentes. Mas esses foram países que destacaram contingentes enormes para guerras. Os Estados Unidos, por exemplo, contabilizavam 16 milhões de ex-combatentes após o fim da Segunda Guerra Mundial. Com números bem mais modestos, os nossos expedicionários não conseguiram ter o mesmo reconhecimento do governo brasileiro.

O livro A Legislação do Ex-Combatente, produzido no fim dos anos 1970 por um ex-combatente de guerra da Marinha, apontou a existência de quase 300 normas legais assinadas entre 1945 e 1978.

Nos primeiros momentos dessa guerra, iniciada em 1939, tanto o Brasil quanto os Estados Unidos se mantiveram neutros. Em 1941, os norte-americanos entraram no conflito e pressionaram o Brasil a fazer o mesmo.

Vargas, porém, resistiu. O presidente flertou com os norte-americanos e os alemães simultaneamente, esperando deles dinheiro e tecnologia para modernizar as Forças Armadas e impulsionar a indústria pesada nacional.

Quem atendeu aos desejos de Vargas foram os Estados Unidos. Em 1941, um decreto presidencial estabeleceu a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), criada com fundos norte-americanos. No ano seguinte, o Brasil declarou guerra à Alemanha e à Itália.

Também pesaram na decisão do presidente o torpedeamento de navios mercantes do Brasil por submarinos alemães e manifestações de rua em diferentes cidades, encabeçadas por entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE), para que o país agisse contra o imperialismo nazista.

General nazista se rende à FEB após a tomada de Fornovo di Taro; e sargento brasileiro Oscar Cardoso Garcez faz graça com prisioneiro alemão
(Reprodução/Wikimedia Commons e Reprodução/Jornalismo de Guerra)

A vitória dos brasileiros na Itália, de acordo com historiadores, teve influência na queda da ditadura do Estado Novo, em outubro de 1945. Vargas governava de forma autoritária desde 1937, quando deu um autogolpe de Estado, extinguiu a Câmara e o Senado e impôs uma Constituição nada democrática.

Vargas foi derrubado por militares, mas eles não pertenciam à FEB. O papel dos expedicionários na redemocratização do Brasil foi, na realidade, indireto e simbólico. O raciocínio é simples: seria incoerente o Brasil continuar com seu regime ditatorial depois de ter entrado numa guerra com o objetivo de derrotar as ditaduras nazifascistas e promover a democracia.

Diferentes parlamentares já na época faziam essa interpretação. Um deles, o deputado constituinte (e futuro senador) Juracy Magalhães (UDN-BA) disse em 1946:

— Os bravos soldados, aviadores e marinheiros do Brasil facilitaram o processo de recuperação democrática em nossa terra. Tivemos uma campanha eleitoral [para presidente da República], e o prélio das urnas afastou de nossa terra o regime que combatemos em terras alheias e possibilitou a vida desta Assembleia, que dará ao Brasil uma Constituição genuinamente democrática.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Claudino Silva afirmou:

— Sem a derrota militar de Hitler, não era possível pensar-se na liquidação da ditadura brasileira. Compreendíamos que, ao declarar guerra ao Eixo e ao enviar os soldados expedicionários, o governo do Brasil dava os mais largos passos no caminho da democracia, pois estava tomando posição contra o fator internacional que criara o clima onde puderam medrar os regimes fascistas e as ditaduras, estava tomando posição contra Hitler e Mussolini, que eram, em realidade, os artífices máximos do Estado Novo.

Em 1947, como senador, Getúlio Vargas (PSD-RS) foi atiçado por seus adversários a explicar essa contradição de seu governo, o que gerou uma acalorada discussão no Senado.

— Eu me pergunto: por que lutamos nós? Por que o Brasil mandou seus heróis aos campos de batalha da Europa? — questionou o ex-ditador.

— Para defender a democracia, livrar o Brasil da ditadura e do Estado Novo e nele implantar a democracia — respondeu, provocativo, o senador Arthur Santos (UDN-PR).

— Não acredito que Vossa Excelência esteja enquadrado entre os acusadores do tempo em que se organizou a Força Expedicionária — devolveu, no mesmo tom, Vargas.

— Nós, os democratas, é que fomos os mais entusiastas defensores da colaboração do Brasil junto às nações que desejavam implantar no mundo o regime democrático. Não pode dizer que foi Vossa Excelência quem mandou a Força Expedicionária para combater na Europa o totalitarismo que ameaçava o mundo — reagiu Santos.

— Fui eu quem tomou a iniciativa — assegurou Vargas.

— Foi a nação brasileira, foram as tendências democráticas do nosso povo — insistiu Santos.

— Foi o povo e fui ao encontro dos seus desejos. Felizes os governos que sentem os desejos dos povos e que os atendem. Nunca me envergonhei de ter seguido a orientação do povo brasileiro — afirmou Vargas, usando toda a sua habilidade política para encerrar a discussão.

Criada no papel em 1943, a FEB precisou de um ano para se tornar realidade. A maior dificuldade do governo Vargas foi arregimentar os combatentes civis. As autoridades militares esperavam dispor de 100 mil soldados, a serem agrupados em três divisões militares. Os jovens não atenderam ao chamado, e o Brasil conseguiu criar uma única divisão, com 25 mil expedicionários.

O ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, não escondeu a decepção. Numa carta ao presidente Vargas, ele escreveu que sonhava ter uma tropa de elite composta de combatentes com “espírito cultivado” e “corpo sadio e forte” — isto é, gente branca, educada e oriunda das classes média e alta. EM vez disso, viu a FEB ser criada a partir da “massa analfabeta, inculta e desprotegida do povo”.

Num discurso em 1947, o senador Luís Carlos Prestes (PCB-DF) fez uma avaliação diferente:

— Nossos soldados na Itália demonstraram as qualidades do nosso povo. Desmentiram, assim, todos os pessimistas, esses senhores que procuravam uma explicação superficial para o nosso atraso nessa teoria anticientífica das raças, baseada num falso “antropologismo”. Nossos caboclos provaram no solo da Itália sua grande capacidade de resistência física, de estoicismo, de lealdade, de bravura, de coragem.

Muitos dos expedicionários não gostavam de ser chamados de “pracinhas”. O praça, no jargão militar, é o soldado raso e sem qualificação. Para eles, o diminutivo dava uma carga ainda mais negativa à palavra. Os detratores da FEB por muito tempo espalharam que os enviados à Itália eram um grupo de desdentados maltrapilhos que estavam despreparados para o combate, serviram de bucha de canhão e, tendo chegado apenas nos meses finais, não fizeram diferença na guerra.

O historiador Francisco Cesar Ferraz, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e autor do livro A Guerra que não Acabou: a reintegração social dos veteranos da Força Expedicionária Brasileira, discorda dessa descrição:

— Eles foram para uma luta de vida ou morte num ambiente desconhecido e extremamente hostil, ora com calor escaldante, ora com temperaturas caindo a -20ºC. Foram corajosos, libertaram inúmeras cidades dos nazistas e capturaram, ao todo, mais de 20 mil inimigos. Para uma força composta de 25 mil homens, esse não é um feito de desprezível. É com razão que muitos deles rechaçavam a palavra “pracinha”, pois remetia a uma situação de inferioridade que não correspondia à realidade.

Chegada de expedicionários ao Brasil em agosto de 1945
(Agência Nacional/Arquivo Nacional)

O escritor Rubem Braga foi enviado à Itália pelo jornal Diário Carioca para acompanhar as ações da FEB. Numa reportagem escrita no primeiro dia de 1945, o correspondente de guerra narrou o tenso momento em que uma patrulha de expedicionários brasileiros por pouco não foi capturada ou morta por soldados nazistas:

Aconteceu que saiu uma patrulha com dois sargentos, nove soldados e um partigiano. A certa altura ela se dividiu em dois grupos. O sargento José Rodrigues de Oliveira Ribeiro, que chefiava um deles, viu uma casa onde supunha que houvesse alemães. Deixou três homens esperando atrás de um barranco e avançou cautelosamente com o soldado Érico Domingos Porto. Os dois homens andavam a certa distância um do outro — os dois metidos em seus capotes brancos com capuzes brancos. O sargento ia andando com todo cuidado quando viu um soldado a alguns metros de distância. Teve a impressão de que o soldado ia lhe dizer alguma coisa, e, levando um dedo à boca e franzindo a sobrancelha, fez um gesto para que ele não dissesse nada, ficasse em silêncio, para não despertar a atenção do inimigo que devia estar dentro da casa. O soldado fez um gesto que sim com a cabeça e acrescentou baixinho:
— Ya, ya.*
No mesmo instante quase, voltando-se, esse soldado viu Érico e apontou para ele o fuzil. Não teve tempo, porém, de puxar o gatilho: o sargento derrubou-o com uma rajada de metralhadora de mão.
O caso não foi difícil de explicar. Como os alemães também andam encapotados e encapuzados de branco, o engano foi mútuo. Assim como o sargento pensou que o soldado fosse brasileiro, o soldado alemão pensou que o sargento Ribeiro fosse alemão — mesmo porque ele é um homem de tipo sanguíneo e claro. No instante, porém, em que viu o praça Erico — moreno e franzino —, o alemão viu que era inimigo e apontou o fuzil. Mas, nesse segundo, o seu “ya, ya” já havia revelado sua nacionalidade ao sargento.
Foi, de resto, uma patrulha feliz: o sargento matou mais um alemão que ia lhe lançando uma granada e o soldado Érico acertou uma granada no peito de outro alemão que ia saindo da casa com um fuzil na mão. A casa foi atacada com rajadas de metralhadora e três granadas lança-rojão — duas das quais bateram na parede sem produzir efeito e a outra arrebentou a porta. O sargento Pedro Rubim e o soldado José Xavier dos Santos, do outro grupo em que se dividira a patrulha, derrubaram um alemão com rajadas de metralhadora. O homem caiu, não se sabe se morto ou ferido — e depois disso nossa patrulha se retirou. […]O soldado Érico, depois de sair na patrulha, notou que sua metralhadora estava engasgada — de fato falhou —, mas assim matou um tedesco [alemão]. Érico foi ferido na perna, mas recusou-se a ser carregado pelos companheiros, voltando à posição andando. Seu ferimento não tem gravidade.

*Ja, ja: “sim” em alemão

A FEB foi extinta no aniversário do dia em que o primeiro grupo de expedicionários embarcou na Itália de volta para o Brasil, em julho de 1945.

A rapidez se explica pela ebulição política que o país vivia naquele momento. Dados os ventos democráticos vindos da vitória na Europa, a ditadura do Estado Novo estava com os dias contados. Por essa razão, e buscando controlar a transição democrática, Vargas marcou eleição presidencial para dezembro.

O ditador, contudo, dava sinais de que poderia virar a mesa e dar um novo autogolpe de Estado. O principal sinal disso era o “queremismo”, movimento político que pedia a sua permanência no governo (o slogan era “Nós queremos Getúlio”).

Nesse ambiente instável, a FEB era uma ameaça para os dois lados. A oposição, que desejava a eleição presidencial e o fim da ditadura, temia que Vargas, vitorioso na guerra, empregasse os expedicionários no autogolpe. O presidente, por sua vez, acreditava que era a oposição que contaria com o apoio dos veteranos da Itália, já que eles, teoricamente, tinham aprendido a valorizar a democracia e atenderiam ao chamado para derrubar o ditador.

Supostamente perigosa tanto para o presidente quanto para os seus adversários, a FEB não encontrou quem lhe defendesse. Com uma simples canetada do governo, foi apagada, desaparecendo como se jamais tivesse existido.

Monumento ao soldado desconhecido, no Cemitério de Pistoia, na Itália; e Monumento aos Pracinhas, no Rio de Janeiro
(Giovanni Baldini/Wikimedia Commons e Fernando Dall’Acqua/Wikimedia Commons)

O historiador Francisco Cesar Ferraz, da UEL, avalia que, se o apagamento foi forte nas primeiras décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial, a situação piorou na década de 1980, com a redemocratização pós-ditadura militar. Nesse momento, os ex-combatentes passaram a ser malvistos pela sociedade. Ele explica:

— Confundiram-se os ex-combatentes com o grupo militar que deu o golpe de Estado em 1964, como se eles tivessem ajudado a impor a ditadura. Essa associação é equivocada. Havia expedicionários de todos os matizes políticos, e um ou outro participou individualmente do golpe, mas a FEB, como instituição, não tinha ideologia. Foi justamente na década de 1980 que ganharam força aquelas histórias que minimizavam e ridiculizavam a participação dos expedicionários na guerra.

Entre os ex-combatentes de direita, aparecem o general Humberto Castello Branco, que depois seria o primeiro presidente da ditadura, e o general Golbery do Couto e Silva, um dos nomes fortes do regime militar.

Dos ex-combatentes de esquerda, destacam-se o historiador Jacob Gorender, que fundaria o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), e o economista Celso Furtado, ministro do Planejamento e da Cultura e um dos principais estudiosos do subdesenvolvimento brasileiro.

Segundo Ferraz, a FEB começou a ser reconhecida apenas em meados de década de 1990, quando as tensões políticas que marcaram a redemocratização praticamente desapareceram. Isso se nota na quantidade crescente de pesquisas acadêmicas sobre o tema que vêm sendo feitas nas universidades.

Para ele, é fundamental que os brasileiros de hoje conheçam a participação dos expedicionários na Segunda Guerra Mundial. Primeiro, porque o alinhamento com os Estados Unidos e o consequente envio da FEB para a Itália foi um divisor de águas para o Brasil tanto em termos econômicos quanto culturais, com reflexos que se veem até hoje.

— Na economia, esse foi o momento em que o Brasil deu início à sua indústria pesada, a partir do financiamento norte-americano. O país, então, se industrializou e se urbanizou. Na cultura, foi o momento em que trocamos a influência francesa, que dominava a sociedade brasileira, pela influência norte-americana, com seu modo de vida consumista — diz

Ferraz aponta uma segunda razão:

— Nestes dias atuais, em que a ditadura militar tem sido relativizada por muita gente, precisamos nos lembrar que houve um momento em que os brasileiros deixaram a polarização de lado e saíram às ruas para exigir que o governo entrasse na guerra para impedir o avanço das ditaduras fascistas e defender a democracia. Os simpatizantes do nazifascismo chegaram a espalhar fake news dizendo que os navios do Brasil não tinham sido afundados por submarinos da Alemanha, mas por navios dos Estados Unidos. Felizmente essas fake news não convenceram, e os brasileiros entenderam qual era o lado que o país deveria apoiar na guerra.

Presidente Juscelino Kubitschek recebe os restos mortais dos expedicionários no Monumento aos Pracinhas, no Rio, em 1960; e ex-combatentes recebem homenagem da presidente Dilma Rousseff em Brasília, em 2015
(Agência Nacional/Arquivo Nacional e Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O historiador Daniel Mata Roque, da Associação Nacional dos Veteranos da FEB, também defende que a história dos expedicionários seja de conhecimento geral no Brasil de hoje:

— Há mais de dez anos, um veterano me disse o seguinte: “Para que brasileiros entendessem tudo aquilo que nós passamos na Itália, seria preciso haver uma guerra no Brasil. Por essa razão, prefiro que eles permaneçam na ignorância. Eu não desejo uma guerra aqui”. Essa fala dá a ideia do tamanho da bestialidade, do sacrifício e do sofrimento de uma guerra. Quando conhecemos a história da FEB, entendemos que hoje precisamos agir diferente e evitar a guerra a qualquer custo, para que nem nós nem nossos filhos tenhamos que passar por aquilo que os expedicionários passaram.

Roque concorda que o interesse pelos expedicionários tem aumentado nos últimos anos. Ele diz que isso também se nota nos encontros anuais dos veteranos. Embora haja cada vez menos ex-combatentes vivos, o número de participantes é crescente, atraindo pesquisadores acadêmicos e amadores, estudantes, professores, colecionadores de objetos de guerra, militares mais novos e simples curiosos.

Atualmente, existem apenas 42 expedicionários vivos, de acordo com informações das duas entidades que os representam. O mais novo tem 99 anos; o mais velho, 107.

O símbolo da FEB é uma cobra fumando um cachimbo. Existem várias explicações possíveis para a imagem. Segundo a mais plausível, trata-se de uma resposta àqueles que diziam que o Brasil não tinha coragem ou capacidade militar e só iria para a guerra no dia em que uma cobra fumasse. Já na guerra, quando algum conflito se aproximava, os soldados diziam: “A cobra vai fumar”. O distintivo com a cobra fumando apareceu no uniforme dos expedicionários, costurado na altura do ombro.

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