Do Império à Democracia: a evolução do Legislativo na sua função fiscalizadora

Do Império à Democracia: a evolução do Legislativo na sua função fiscalizadora

Igor Brito

Publicado em 23/8/2024

Em 1748, um intelectual francês publicava suas propostas para controlar os abusos de poder dos governantes. Conhecido como Montesquieu, Charles-Louis de Secondat não viveu o suficiente para ver o impacto que sua obra O Espírito das Leis teria no surgimento das democracias modernas. Naquele mesmo ano, estava em construção o suntuoso Palácio de Mafra, em Portugal, custeado em grande parte com ouro brasileiro. A realidade europeia era de impérios absolutistas.

Em seu livro, Montesquieu propõe a divisão do Estado em três Poderes: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Com funções distintas, um Poder limitaria o outro em caso de excessos. Além dele, outros pensadores — como John Locke — contribuíram para essa teoria. Foi nesse contexto que ideias como a de “tripartição do poder” e a do “sistema de freios e contrapesos” amadureceram ao longo dos últimos séculos.

Montesquieu e o Palácio de Mafra
Jacques-Antoine Dassier/Wikimedia Commons e Pedro Bello/Wikimedia Commons

Após 200 anos de sua criação, o Senado possui hoje ferramentas e competências poderosas para exercer uma de suas principais funções: fiscalizar a administração pública. Essa é a avaliação de Fernando Moutinho Ramalho Bittencourt, consultor legislativo do Senado.

Mas ele ressalta que a possibilidade de criar Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPI), convocar autoridades para prestar informações e utilizar outros instrumentos de controle não garante, por si só, o fim das irregularidades no Executivo.

— Esse desenho [previsto na Constituição Federal de 1988] conseguiu, em alguns momentos, frear abusos. Em outros momentos, a combinação de incentivos aos Poderes responsáveis pelos freios e contrapesos levou a que esses amplos recursos não tenham sido exercidos em sua potencialidade. Em 2024, Congresso e Judiciário têm uma noção clara dos recursos de que dispõem, o que significa uma posição mais fortalecida em relação ao que havia em 1988 — disse ele à Agência Senado.

A Carta Magna de 1988, além de manter as atribuições do Poder Legislativo que já estavam presentes em outras Constituições, ampliou seu papel fiscalizador e estabeleceu mais solidez na capacidade prática de exercer essa função. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o impeachment, que é a possibilidade de os parlamentares destituírem o presidente da República.

Promulgação da Constituição de 1988, que ampliou a capacidade de fiscalização do Legislativo
Arquivo/Senado Federal

Impeachment

Essa possibilidade está prevista em todas as Constituições republicanas, ou seja, desde 1891. Mas somente após 1988 houve casos de afastamento de presidentes da República em decorrência de processos de impeachment que respeitaram o devido rito legal: Fernando Collor de Mello, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016.

O consultor Fernando Bittencourt destaca que o avanço na aplicação dos instrumentos de freios e contrapesos foi possível, ao longo do tempo, com o desenvolvimento de leis e interpretações uniformizadas.

O Senado é o órgão responsável por julgar os casos de impeachment — após autorização da Câmara dos Deputados. Ao presidir a sessão plenária que afastou Dilma Rousseff de sua função, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) afirmou que decisões como essa não são “indolores” e têm consequências graves na escolha popular.

— O povo lutou muito para reconquistar o direito de eleger diretamente o seu presidente da República. (…) A sessão de hoje coloca uma imensa responsabilidade sobre o Senado. (…) Quero pedir mais uma vez: serenidade e espírito público — declarou o senador na abertura daquela sessão.

A perda do cargo, a inabilitação para cargo público por oito anos e a inelegibilidade dela decorrente são as sanções para os crimes de responsabilidade. A Carta Magna elenca as infrações sujeitas ao impeachment, como atentar contra a Constituição, contra a segurança interna do país ou o livre exercício dos Poderes.

Tanto no caso de Fernando Collor como de Dilma Rousseff, as regras do impeachment foram alvo de divergências e adaptações controversas, muitas delas levada à judicialização no Supremo Tribunal Federal (STF), apesar de existir uma Lei do Impeachment desde 1950. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, apresentou em 2023 um projeto de lei, o PL 1.388/2023, que atualiza esse arcabouço normativo.

Para exercer sua função fiscalizadora, os legisladores podem utilizar os diversos meios de controle à sua disposição. O processo de impedimento que culminou na renúncia de Collor em 1992 e em sua punição — com inabilitação para cargos públicos e inelegibilidade — foi desdobramento de outra ferramenta com particular visibilidade: a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).

Plenário do Senado em agosto de 2016, durante julgamento do processo de impeachment de Dilma Rousseff
Pedro França/Agência Senado

CPI

As comissões parlamentares de inquérito são colegiados temporários que têm diversas atribuições — e uma delas é apurar suspeitas de irregularidades na administração pública. Como resultado de seus trabalhos, o Brasil já viu leis surgirem, autoridades serem presas e órgãos de fiscalização serem criados.

Uma CPI pode ser composta somente por senadores ou somente por deputados federais. E também pode ser mista, quando é formada por ambos: a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI).

Há CPIs que contribuíram com resultados concretos, mas nem sempre as investigações legislativas são desenvolvidas plenamente. Nos últimos 10 anos, por exemplo, 48% das comissões parlamentares de inquérito criadas não foram instaladas, o que significa que não tiveram seus trabalhos iniciados.

Para Magno Malta (PL-ES), as investigações bem sucedidas dependem de pessoal capacitado e da análise de fatos determinados. Como senador, ele já foi membro de seis comissões desse tipo — e foi presidente de duas: a CPI da Pedofilia e a CPI dos Maus Tratos.

— Uma CPI, para dar certo, precisa ser bem assessorada, com Polícia Federal, Polícia Civil, pessoas que conheçam cientificamente as razões pelas quais a CPI foi instalada. (…) Mas quando uma CPI não é de “causa”, quando é “politiqueira”, ela vai acabar em nada. É o que o pessoal chama de pizza — afirmou Malta à Agência Senado.

Nos moldes atuais, uma comissão parlamentar de inquérito concentra algumas das atribuições investigativas de policiais e juízes, como a de convocar testemunhas e a de quebrar sigilo bancário e fiscal. Por outro lado, ela não possui competência para condenar os investigados — mas pode enviar suas conclusões aos órgãos policiais ou ao Ministério Público, para que estes determinem, se for o caso, a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.

Nem sempre os parlamentares tiveram essa robustez à disposição. No Brasil Império, por exemplo, eles tinham à sua disposição “comissões auxiliares” para conduzir investigações sobre questões comerciais e agrícolas.

Na Constituição de 1934, as comissões parlamentares de inquérito foram formalmente introduzidas (com menor poder de atuação, a prerrogativa era apenas dos deputados). Em 1937, Getúlio Vargas aboliu as CPIs. Anos depois, elas foram resgatadas pela Constituição de 1946 (quando o Senado também ganhou a possibilidade de criá-las), sendo mantidas no regime militar e fortalecidas com a Constituição de 1988.

As CPIs, no entanto, não são capazes de investigar de forma contínua e sistemática todos os detalhes que envolvem a administração pública. Para isso, os parlamentares contam com a colaboração de outro órgão do âmbito legislativo: os tribunais de contas.

Magno Malta foi presidente da CPI da Pedofilia
Márcia Kalume/Agência Senado

TCU

Desde a criação do Senado, com a Constituição imperial de 1824, havia parlamentares que defendiam um maior controle das contas públicas, como Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, o marquês de Barbacena, que foi senador por Alagoas. 

Criado em 1891, o Tribunal de Contas da União (TCU) foi desenhado para acompanhar as contas públicas do Poder Executivo e — conforme defendia o então ministro da Fazenda, Ruy Barbosa — atuar como um mediador independente.

Patrono do Senado, Ruy Barbosa ressaltava que o controle sobre as finanças públicas era muito frágil. “Em nenhuma instituição há maior facilidade aos mais graves e perigosos abusos”, argumentava ele, ao se referir ao orçamento público na exposição de motivos para a criação do TCU.

Ruy Barbosa, de pé, discursa no Plenário do Senado, no Palácio Conde dos Arcos, no Rio de Janeiro
Fundação Casa de Rui Barbosa

Com a Constituição de 1988, as atribuições do TCU superaram o aspecto estritamente contábil e passaram a considerar um controle mais amplo sobre o andamento dos projetos governamentais. Atualmente, os auditores do tribunal analisam também aspectos como eficiência e entrega de resultados.

O Senado, a Câmara dos Deputados e suas respectivas comissões podem solicitar fiscalizações e informações ao TCU. Além disso, o tribunal emite opinião sobre as contas da gestão do presidente da República para que o Congresso Nacional as julgue.

Em 2016, o processo que culminou na destituição de Dilma Rousseff evidenciou a interação de diversos mecanismos de fiscalização. Um dos argumentos utilizados para o impeachment foi a reprovação das contas presidenciais pelo TCU, mesmo diante de divergências.

O consultor do Senado Fernando Bittencourt observa que a fiscalização dos parlamentares também leva em consideração critérios políticos, o que pode divergir das análises feitas sob outras perspectivas, como a técnica ou a jurídica. Para ele, essa tensão é inerente ao sistema político e se concilia com a democracia.

— Esse protagonismo do debate político é desejável para o próprio mecanismo de freios e contrapesos, porque aumenta os espaços em que as decisões do sistema político-institucional são debatidas e reciprocamente controladas — afirma ele.

Sessão plenária do TCU: tribunal auxilia o Congresso Nacional na fiscalização das contas públicas
Divulgação/TCU

Apesar de os parlamentares não se envolverem com os detalhes dos gastos públicos já realizados, eles se dedicam às minúcias da fase de elaboração do orçamento público.

Orçamento

O projeto de Lei Orçamentária Anual é elaborado pelo Executivo, que então o apresenta ao Congresso Nacional. A partir desse momento, os parlamentares podem alterar a proposta — e cabe a eles aprovar o Orçamento.

Essas prerrogativas do Legislativo constituem um instrumento periódico (nesse caso, anual) e abrangente de fiscalização. O fato de o Poder Executivo não poder gastar sem prévia autorização legal dá ao Parlamento a possibilidade de controlar as decisões governamentais.

Nos últimos 33 anos, em 14 ocasiões o Orçamento foi aprovado após o recesso de fim de ano, ou seja, com atraso, como reflexo de divergências políticas.

Desde 2014, os parlamentares viram crescer sua participação no Orçamento por meio das chamadas emendas impositivas. O mecanismo reserva uma fatia dos gastos públicos para que tenham a destinação e a área escolhida por cada parlamentar, comissão e bancada estadual. Em 2024, a cada R$ 100 das despesas primárias (que não se referem a gastos financeiros, como os juros ), R$ 1,79 é reservado para que os parlamentares decidam sobre sua  aplicação.

A possibilidade de controlar as ações do Poder Executivo por meio da análise de uma proposição legislativa não se limita ao Orçamento. É o caso também das indicações de autoridades e dos tratados internacionais.

Tratados internacionais

O envolvimento do Senado com questões internacionais se iniciou ainda no Brasil Império, diante de conflitos armados pelo domínio da região do Prata, no sul do continente, que era estratégica para o comércio e o abastecimento locais.

Atualmente, para que o presidente da República possa incluir no ordenamento jurídico os tratados internacionais por ele assinados, é necessária a ratificação da Câmara dos Deputados e do Senado.

Em 2023 tramitavam no Senado 158 tratados desse tipo — os mais antigos haviam chegado à Casa em 2019.

Indicação de autoridades

A Constituição de 1988 também dá ao Senado a competência para aprovar ou rejeitar, após sabatina, as indicações que o presidente da República faz para vagas em:

  • outro Poder, como é o caso dos ministros do Supremo Tribunal Federal;
  • órgãos independentes, como o Tribunal de Contas da União ou Ministério Público da União;
  • algumas das estruturas do governo federal, como é o caso de embaixadores ou diretores de agências reguladoras.

O aval dos senadores não é uma novidade da atual Carta Magna. Já no início da república, há mais de 100 anos, os ministros da Suprema Corte precisavam ser aprovados no Senado. Em 1894, a nomeação do médico Candido Barata Ribeiro foi rejeitada na Casa sob o argumento de que ele não possuía notável saber jurídico.

”Não se pode concluir senão pela nomeação de pessoa de notável saber jurídico, e não de quem nunca gozou dessa reputação”, diz o parecer da então Comissão de Justiça e Legislação.

A maioria das indicações, no entanto, são aprovadas. Nos últimos cinco anos foram acatadas em média cerca de 76 indicações do governo federal por ano.

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado, em dezembro de 2023, durante sabatina de Flávio Dino, que havia sido indicado ao cargo de ministro do STF
Marcos Oliveira/Agência Senado

Convocação de autoridades

Os parlamentares podem exigir o comparecimento de ministros do governo federal ou autoridades de nível hierárquico equivalentes do Poder Executivo para prestarem informações. A ausência sem justificativa é crime de responsabilidade, o que pode levar ao impeachment da autoridade.

Mas as informações também podem ser solicitadas sem que seja necessário o comparecimento da autoridade em questão — isso pode ser feito por meio do “requerimento de informação”.

Na prática, os parlamentares costumam convidar as autoridades, sem obrigá-las a comparecer. Fernando Bittencourt destaca que os convites “dificilmente são ignorados e elevam bastante o volume de informações obtidas”.

Humberto Costa (PT-PE) afirma que esses instrumentos são fundamentais para o esclarecimento e a prestação de contas detalhada de determinados atos. Senador desde 2011, Humberto também já foi ministro entre 2003 e 2005.

— Já fui ministro da Saúde, no outro lado da situação, e posso dizer que esses instrumentos são extremamente relevantes, porque também é do interesse do Poder Executivo ser transparente e claro nos seus atos com o Poder Legislativo, para que possa ser bem compreendido e possa ter apoio no seu trabalho, mantendo a harmonia e a independência — afirmou ele à Agência Senado.

Humberto Costa durante audiência no Senado que recebeu a ministra da Saúde, Nísia Trindade, em abril deste ano
Edilson Rodrigues/Agência Senado

Os membros do Legislativo já podiam convocar autoridades antes da Constituição de 1988, mas nesse período a iniciativa não contava com status constitucional. Nos últimos cinco anos, o uso dessa ferramenta de controle cresceu entre os parlamentares: o número de requerimentos apresentados pelos senadores desde 2018 é quase o dobro da quantidade que havia sido apresentada nos 18 anos anteriores.

Outras formas

A possibilidade de sustar ato do Poder Executivo que extrapole seus poderes regulamentares, a realização de audiências públicas e a criação de comissões de controle para áreas específicas são outros métodos de fiscalização à disposição do Congresso Nacional. 

Utilizados com maior ou menor intensidade pelos parlamentares, a depender do contexto e da estrutura de controle, os meios de fiscalização vão se adaptando com o passar dos anos. Para o consultor Fernando Bittencourt, o Congresso Nacional se destaca pela intensidade em determinadas intervenções, na comparação com os países vizinhos.

— Alguns poucos Legislativos podem fazer trabalhos de acompanhamento da administração de forma mais frequente e sistemática, como no Chile, mas não vejo outros parlamentos na América Latina que tenham exercido ações de controle de grande impacto com a intensidade que demonstrou o Congresso brasileiro — afirmou ele à Agência Senado.

No bicentenário do Senado, fica a incógnita de como irá se desenvolver a função de controle nas próximas décadas. Não que o mistério seja algo ruim: os leitores de Montesquieu, em 1748, também desconheciam os frutos daquelas ideias.

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