No coração do império romano, em uma rua estreita e pouco iluminada, encontrava-se a Taberna dos Hereges, um local obscuro frequentado por aqueles cujas ideias desafiaram o que os primeiros concílios e as Escrituras estabeleceram como verdade. A taberna era um refúgio onde heresiarcas dos séculos I ao IV lamentavam suas derrotas, compartilhavam teorias controversas e alimentavam esperanças de, um dia, triunfarem.
Era uma noite como tantas outras, e em uma mesa central, cinco figuras discutiam acaloradamente: Basílides, Cerinto, Ário, Marcião e Nestório. Cada um defendia suas ideias com paixão, mas também carregava o peso das críticas que enfrentaram.
O DEBATE DOS HEREGES
BASÍLIDES: O FILÓSOFO GNÓSTICO
Basílides, o gnóstico, tomou a palavra primeiro.
— Vocês não percebem? O Deus supremo não pode ter criado este mundo vil e corrupto. Ele delegou a tarefa a uma série de emanações, e o último desses seres criou o universo material. Jesus era um espírito divino, enviado para revelar o conhecimento secreto àqueles iluminados o suficiente para entendê-lo.
Cerinto não conteve o riso.
CERINTO: O DOCETA RACIONALISTA
— Basílides, você complica demais! O que importa é que Jesus não tinha carne. A matéria é vil, como você mesmo diz. Ele não sofreu na cruz, apenas parecia humano. A salvação é espiritual, não física.
ÁRIO: O RACIONALISTA TEOLÓGICO
Ário, irritado, interrompeu:
— Vocês estão todos equivocados. Jesus não é igual ao Pai. Ele foi criado como o primeiro e mais exaltado dos seres, mas houve um tempo em que Ele não existia. A eternidade pertence apenas ao Pai.
Marcião, de semblante carrancudo, fez um gesto de impaciência.
MARCIÃO: O REVOLUCIONÁRIO ANTÍQUO
— O problema de vocês é que ainda tentam reconciliar o Deus do Antigo Testamento com o do Novo. Isso é impossível! O Deus de Israel é cruel e vingativo. Cristo veio para revelar um Deus de amor e para nos libertar desse demiurgo maligno. Por isso rejeitei todas as Escrituras judaicas.
Nestório, o mais calmo, observava os outros com ar de superioridade.
NESTÓRIO: O PRAGMÁTICO DA CRISTOLOGIA
— Vocês tornam tudo muito místico ou emocional. A verdade é simples: Jesus tinha duas naturezas completamente separadas, a divina e a humana. Maria não pode ser chamada de “Mãe de Deus”. Ela foi apenas mãe do homem Jesus. Não compliquem o que é racional!
A CHEGADA DO DESCONHECIDO
Antes que a conversa pudesse se intensificar, a porta rangeu e um homem de aparência simples entrou. Usava uma túnica surrada, trazia um pergaminho sob o braço e um olhar determinado. Ele se dirigiu diretamente à mesa.
— Salve, hereges! Parece que estou no lugar certo para corrigir algumas ideias tortas. Meu nome é Vitório de Bereia, e vim aqui para expor a verdade que vocês tanto negam.
Os heresiarcas se entreolharam, surpresos com a ousadia. Basílides foi o primeiro a falar:
— E quem você pensa que é, Vitório de Bereia, para nos desafiar?
Vitório sorriu.
— Sou um servo das Escrituras, e isso basta. Agora, vamos começar.
O Confronto com Basílides, o Gnóstico
Vitório, primeiramente dirigiu-se para Basílides, que se apoiava na mesa com um ar pretensioso, como se esperasse que todos ali reconhecessem sua superioridade intelectual. O gnóstico tomou um gole de vinho e iniciou sua defesa.
BASÍLIDES:
— Vitório, você se prende a conceitos simplistas. Como pode o Deus Supremo, puro e perfeito, ter criado este mundo repleto de corrupção? A matéria é vil, imperfeita, distante do divino. Somente um Deus inferior, uma das emanações da Plenitude, poderia ter criado algo tão impuro. Jesus, claro, era um ser espiritual. Ele jamais poderia se misturar com algo tão baixo como a carne humana.
Vitório, com serenidade, respondeu:
VITÓRIO:
— Basílides, o erro de sua visão é que você confunde a criação de Deus com a corrupção causada pelo pecado. Gênesis 1:31 diz claramente: “E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom”. O mundo material foi criado perfeito. A corrupção que você vê é fruto da queda do homem, não de um defeito na criação divina.
Basílides arqueou uma sobrancelha, desdenhoso.
BASÍLIDES:
— Então você acredita que o Deus perfeito lida diretamente com a matéria? Que absurdo! A carne é fraca, cheia de paixões. É impossível que o Verbo divino tenha assumido tal forma.
Vitório, firme, rebateu:
VITÓRIO:
— Justamente porque a carne é fraca é que Cristo teve de se encarnar. Hebreus 2:14-15 explica: “Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, também Ele igualmente participou das mesmas coisas, para que, pela morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo”. Se Jesus não tivesse assumido a carne, não poderia nos redimir.
Basílides retrucou, com um sorriso sarcástico:
BASÍLIDES:
— Redimir? Você fala como se a morte de um corpo fosse algo significativo. O verdadeiro Deus não sofre, não morre, e não se rebaixa a essa existência decadente.
Vitório respirou fundo, mantendo a calma.
Vitório:
— Sua lógica é limitada, Basílides. Você tenta reduzir Deus ao que pode entender. O Verbo se fez carne (João 1:14) porque a salvação exige um mediador que seja plenamente Deus e plenamente homem. Cristo sofreu em Sua humanidade para vencer a morte e o pecado. Ele não se rebaixou; Ele demonstrou Sua glória em humildade (Filipenses 2:6-8).
Basílides cruzou os braços, mas ainda tentou contra-argumentar.
BASÍLIDES:
— E quanto ao conhecimento? O verdadeiro caminho para a salvação não está no sofrimento ou no sangue, mas no conhecimento secreto. Apenas os iluminados podem alcançar a divindade.
Vitório respondeu com vigor:
VITÓRIO:
— Essa é outra falácia sua. O evangelho não é para uma elite intelectual; é para todos os que creem. Paulo escreveu em 1 Coríntios 1:21 que “aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura da pregação”. Não é o conhecimento oculto que salva, mas a fé em Cristo e Sua obra redentora.
Basílides, sem argumentos, abaixou a cabeça, murmurando algo inaudível. Vitório completou:
VITÓRIO:
— Você tentou construir um caminho para Deus baseado em sua própria lógica, mas esqueceu-se do que o profeta Isaías escreveu: “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor” (Isaías 55:8). A salvação é pela graça, Basílides, não pelo intelecto humano.
Com isso, Basílides silenciou, e Vitório virou-se para o próximo interlocutor, deixando o gnóstico com seus pensamentos.
O Embate com Cerinto, o Doceta
A seguir, Vitório voltou seu olhar para Cerinto, que estava recostado em sua cadeira, com um ar de soberba. Ele parecia se divertir com a ideia de refutar o apologista.
CERINTO:
— Ah, Vitório, poupe-me de seus argumentos. A verdade é simples: Jesus era um espírito divino. Ele nunca foi verdadeiramente humano. Como poderia Deus, perfeito e imutável, tomar para Si algo tão corruptível quanto a carne? Ele apenas parecia humano. O sofrimento na cruz? Uma ilusão.
Vitório inclinou-se ligeiramente para frente, encarando Cerinto com firmeza.
VITÓRIO:
— Cerinto, o problema com sua visão é que ela transforma a encarnação em uma farsa e a cruz em um teatro. Se Jesus não foi verdadeiramente humano, então Ele não poderia ser o Salvador. O apóstolo João foi claro ao dizer: “Todo espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus” (1 João 4:2-3). Você se encaixa exatamente naquilo que João advertiu.
Cerinto franziu a testa, mas tentou contra-argumentar:
CERINTO:
— João? Ele foi influenciado demais pelos judeus. Deus jamais poderia assumir carne. A matéria é vil e não pode se unir ao divino.
Vitório respondeu, sem hesitar:
VITÓRIO:
— Sua visão sobre a matéria está errada. Gênesis 1:31 declara que, ao final da criação, Deus viu tudo o que havia feito, e era “muito bom”. A corrupção da carne não vem de sua criação, mas do pecado. Cristo assumiu a carne para redimir o que foi corrompido. Sem encarnação, não há redenção.
Cerinto bufou e retrucou:
CERINTO:
— Mesmo que você insista nessa ideia, como poderia o Deus eterno sofrer ou morrer? A cruz é uma contradição. Deus não pode ser ferido, muito menos derrotado por algo tão baixo quanto o sofrimento humano.
Vitório manteve a calma e replicou:
VITÓRIO:
— Cristo não sofreu em Sua divindade, mas em Sua humanidade. Ele é plenamente Deus e plenamente homem. Foi em Sua humanidade que Ele se fez obediente até à morte, e morte de cruz (Filipenses 2:8). Essa morte não foi uma derrota, mas uma vitória. Pela cruz, Ele derrotou o pecado e a morte (Colossenses 2:14-15).
Cerinto ainda tentou uma última investida:
CERINTO:
— Mesmo assim, não faz sentido que o Deus eterno sujeite-se à fraqueza humana. Isso é um insulto à Sua glória!
Vitório respondeu com um brilho nos olhos, como quem proclamava uma verdade incontestável:
VITÓRIO:
— O que você chama de insulto, a Escritura chama de amor. Cristo se humilhou para nos exaltar. Isaías 53:4-5 nos diz que Ele tomou sobre Si as nossas dores e foi ferido por nossas transgressões. Ele não precisava, mas escolheu. Não porque fosse obrigado, mas porque nos amou. Você tenta tornar Deus inatingível, mas o Deus verdadeiro desceu até nós para nos salvar.
Cerinto, sem resposta, inclinou a cabeça, fitando a mesa com um semblante perturbado.
Vitório finaliza com Cerinto
— O evangelho não é sobre um Deus distante, mas sobre Emanuel, Deus conosco (Mateus 1:23). O Verbo fez-Se carne para resgatar o que estava perdido. Sua visão não apenas nega a encarnação, mas destrói a esperança que há na cruz.
Com isso, Vitório voltou-se para o próximo interlocutor, deixando Cerinto imerso em silêncio, derrotado por um argumento que ele não podia refutar.
O Debate com Ário, Heresiarca Cristológico
Ário, que estava sentado com postura rígida e uma expressão de autoconfiança. Ele parecia pronto para refutar qualquer tentativa de argumentação contrária à sua visão. E após Cerinto calar-se ante os argumentos de Vitório com a voz firme, Ário iniciou seu discurso:
ÁRIO:
— Vitório de Bereia, você deveria abandonar essas ideias confusas. A lógica é clara: Jesus é o maior de todos os seres criados, mas Ele não é eterno como o Pai. “Houve um tempo em que Ele não era.” O Pai é o único verdadeiro Deus, eterno e imutável. O Filho foi gerado, criado antes de tudo, mas ainda assim, é inferior ao Pai.
Vitório, observando a firmeza de Ário, respondeu com calma:
VITÓRIO:
— Ário, suas palavras mostram que você não compreendeu a natureza de Cristo como revelada nas Escrituras. Em João 1:1, está escrito: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” O Verbo não foi criado; Ele é eterno. Se você negar isso, está negando o próprio fundamento do evangelho.
Ário cruzou os braços e rebateu:
ÁRIO:
— Você interpreta João 1:1 de forma equivocada. Jesus é chamado de “Filho de Deus”, o que implica que Ele foi gerado. Ele pode ser divino, mas não pode ser igual ao Pai. O próprio Jesus disse: “O Pai é maior do que Eu” (João 14:28). Isso prova que Ele é subordinado.
Vitório manteve a paciência e respondeu:
VITÓRIO:
— Quando Jesus disse “O Pai é maior do que Eu”, Ele estava falando em Sua condição de servo, ao assumir a forma humana. Filipenses 2:6-7 explica isso claramente: “Sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a Si mesmo, tomando a forma de servo.” Em Sua encarnação, Ele se submeteu ao Pai para cumprir o plano de redenção, mas isso não diminui Sua eternidade ou divindade.
Ário tentou um novo ataque:
ÁRIO:
— Mas o próprio Jesus declarou que Ele foi enviado pelo Pai. Quem é enviado é inferior àquele que envia. Se Ele fosse igual ao Pai, não precisaria ser enviado.
Vitório, com um olhar firme, respondeu:
VITÓRIO:
— O envio de Jesus pelo Pai não é uma questão de inferioridade, mas de missão. O Pai enviou o Filho para salvar o mundo (João 3:16), mas isso não significa que o Filho é menos divino. Isaías 9:6 chama o Messias de “Pai da Eternidade”, um título que só pode ser atribuído a Deus. Além disso, em João 8:58, Jesus disse: “Antes que Abraão existisse, Eu sou.” Aqui, Ele se identifica com o “Eu sou” de Êxodo 3:14, o nome divino eterno.
Ário franziu o cenho, mas insistiu:
ÁRIO:
— Então como você explica que Jesus morreu? Deus não pode morrer! Isso prova que Ele não é igual ao Pai.
Vitório respondeu com vigor:
VITÓRIO:
— A morte de Jesus ocorreu em Sua natureza humana, não em Sua divindade. Ele é uma pessoa com duas naturezas: divina e humana. Ele assumiu a humanidade para que pudesse morrer e, assim, nos redimir. Colossenses 1:19-20 diz que foi do agrado do Pai que toda a plenitude habitasse n’Ele, e que por meio d’Ele fossem reconciliadas todas as coisas pelo sangue da cruz. Se Jesus não fosse plenamente Deus, Sua morte seria inútil.
Ário, percebendo que suas objeções não estavam funcionando, ficou em silêncio por alguns instantes. Vitório finalizou:
VITÓRIO:
— Sua visão reduz Cristo a uma criatura exaltada, mas o que as Escrituras revelam é muito maior: Ele é o próprio Deus encarnado, que se humilhou por amor a nós. Negar Sua eternidade e divindade é negar o coração do evangelho.
Ário desviou o olhar, calado. Sua autoconfiança havia se dissipado diante da clareza e profundidade dos argumentos do até então desconhecido apologista de Bereia.
Vitório virou-se para Marcião, que parecia impaciente, mexendo com as mãos nos pergaminhos que trazia consigo. O rosto do heresiarca exibia um misto de desdém e autoconfiança, como se acreditasse que seu conhecimento fosse superior ao de todos os presentes.
MARCIÃO:
— Vitório, eu realmente espero algo mais convincente vindo de você. Minha posição é clara: o Deus do Antigo Testamento não é o Deus do Novo. O primeiro é um tirano cruel, que exige obediência cega e impõe punições severas. Já Cristo revelou um Deus de amor, misericórdia e graça. Por isso, rejeitei as Escrituras judaicas e fiquei apenas com os escritos de Paulo, o único apóstolo que compreendeu a verdadeira natureza do evangelho.
Vitório, com um semblante sereno mas firme, respondeu:
VITÓRIO:
— Marcião, o problema com sua visão é que você tenta dividir o Deus da Bíblia em duas entidades diferentes, mas o próprio Cristo jamais fez isso. Ele afirmou: “Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim para destruí-los, mas para cumpri-los” (Mateus 5:17). Se o Deus do Antigo Testamento fosse um demiurgo maligno, como você alega, por que Jesus teria vindo cumprir Suas palavras?
Marcião inclinou-se para frente, como se estivesse pronto para atacar.
MARCIÃO:
— O Antigo Testamento está cheio de guerras e sangue! Como isso poderia vir de um Deus de amor? Cristo veio para nos libertar desse sistema opressor. O Deus do Novo Testamento não tem nada a ver com aquele do Antigo.
Vitório manteve a calma e retrucou:
VITÓRIO:
— Marcião, você está ignorando que o mesmo Deus que executa juízo no Antigo Testamento também é descrito como compassivo e misericordioso. Veja o que está escrito em Êxodo 34:6-7: “O Senhor, Senhor Deus misericordioso e piedoso, tardio em irar-se e grande em benignidade e verdade.” Além disso, as guerras e juízos são manifestações de Sua santidade e justiça, não de crueldade. O pecado exige resposta, e Deus sempre agiu para proteger Seu povo e cumprir Suas promessas.
Marcião rebateu com veemência:
MARCIÃO:
— E como você explica as restrições e as leis do Antigo Testamento? Regras absurdas que oprimiam as pessoas! Cristo veio para abolir tudo isso e trazer a liberdade.
Vitório sorriu levemente, preparado para a réplica:
VITÓRIO:
— Você está confundindo a função da lei. Paulo, que você tanto exalta, escreveu em Gálatas 3:24 que “a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos justificados”. A lei não era um fim em si mesma, mas uma preparação para a vinda do Messias. Jesus cumpriu a lei, demonstrando o que significa viver em perfeita obediência a Deus e nos mostrando que somente por meio d’Ele podemos ser salvos.
Marcião, ainda mais frustrado, tentou outro ataque:
MARCIÃO:
— E o que dizer dos sacrifícios? O Deus do Antigo Testamento exigia sangue e morte constantemente. Isso é incompatível com o Deus de amor que Cristo revelou.
Vitório, agora com tom firme, respondeu:
Vitório:
— Os sacrifícios do Antigo Testamento apontavam para o sacrifício perfeito de Cristo. Hebreus 10:1-4 explica que “a lei, tendo a sombra dos bens futuros, e não a imagem exata das coisas, nunca pode, pelos mesmos sacrifícios que continuamente se oferecem a cada ano, aperfeiçoar os que a eles se chegam”. Cristo é o cumprimento de todos esses sacrifícios. Ele é “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (João 1:29).
Marcião calou-se por um momento, visivelmente abalado com a argumentação. Vitório, percebendo a hesitação, concluiu:
VITÓRIO:
— Sua tentativa de separar o Deus do Antigo e do Novo Testamento é um ataque ao próprio caráter de Deus. Malaquias 3:6 declara: “Porque eu, o Senhor, não mudo.” O Deus que puniu o pecado no Antigo Testamento é o mesmo que ofereceu Seu Filho para nos salvar no Novo. O evangelho não é uma ruptura, mas o cumprimento de uma promessa feita desde o Éden (Gênesis 3:15). Sua visão destrói a unidade das Escrituras e o plano redentor de Deus.
Marcião, sem argumentos, recostou-se na cadeira, murmurando palavras inaudíveis. Vitório o encarou com compaixão, mas também com convicção, sabendo que a verdade havia prevalecido.
Por fim Vitório voltou-se para Nestório, que mantinha uma expressão de aparente superioridade enquanto tomava um gole de vinho.
— Nestório, suas ideias fragmentam a pessoa de Cristo. Quando você separa as naturezas divina e humana ao ponto de dizer que Ele é como “óleo e água”, você compromete o mistério e a unidade da encarnação.
Nestório ergueu uma sobrancelha e rebateu:
— E como poderia ser de outra forma? É impossível que a natureza divina seja misturada com a humana sem que uma destrua a outra. Além disso, é um absurdo dizer que Maria gerou Deus. Ela foi apenas mãe do homem Jesus.
Vitório, com um olhar firme, respondeu:
— O que você não compreende é que a Bíblia revela Jesus como uma pessoa, completamente Deus e completamente homem, sem confusão, separação ou divisão. Isaías 9:6 declara que o menino que nasceu seria chamado de “Deus Forte”. Esse título não se refere apenas à Sua natureza divina, mas à unidade inseparável de quem Ele é.
Nestório, tentando argumentar, questionou:
— Mas como você explica que Deus pode ser gerado por uma mulher? Isso não faz sentido!
Vitório respondeu com paciência:
— O que Maria gerou foi a pessoa de Jesus, que é tanto Deus quanto homem. Não estou dizendo que Maria é “mãe de Deus” como se ela tivesse origem divina ou autoridade sobre Ele. Estou dizendo que o próprio Deus assumiu a humanidade em Cristo (João 1:14). Sua encarnação foi uma ação completa e perfeita. Separar Suas naturezas destrói a obra redentora da cruz.
Nestório cruzou os braços, sem resposta.
Vitório continuou:
— Você se esquece de Filipenses 2:6-8, que explica que Cristo, sendo em forma de Deus, esvaziou-se a Si mesmo, tomando forma de servo e tornando-se semelhante aos homens. Essa verdade só faz sentido quando entendemos que Ele é uma pessoa com duas naturezas unidas, mas distintas. Separar essas naturezas torna impossível Sua obra de mediação entre Deus e os homens (1 Timóteo 2:5).
Com isso, Nestório apenas abaixou a cabeça, enquanto Vitório o olhava fixamente.
O FINAL ÉPICO
A taberna estava em um silêncio pesado, quebrado apenas pelo som das tochas crepitando nas paredes. Os heresiarcas, um a um, haviam sido refutados. Suas expressões variavam entre frustração, confusão e resignação. Lucas permaneceu de pé, sua postura tranquila, mas cheia de autoridade, enquanto observava os cinco homens que, outrora, haviam encantado muitos com suas heresias, mas agora não tinham mais palavras.
Ele respirou fundo e deu o golpe final:
VITÓRIO:
— Vocês passaram suas vidas tentando construir teorias para moldar Deus à lógica humana. Tentaram esculpir o Criador à imagem de suas próprias ideias limitadas, mas esqueceram-se do que Deus revelou sobre Si mesmo.
Vitório abriu o pergaminho que trazia consigo e leu com voz firme:
— “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor. Porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos” (Isaías 55:8-9).
Ele fechou o pergaminho e continuou:
VITÓRIO:
— Basílides, você tenta negar a criação de Deus, mas esquece que Ele é o autor de tudo e chamou Sua obra de boa. Cerinto, você reduz o sacrifício de Cristo a uma ilusão, mas foi Sua carne que nos trouxe redenção. Ário, você diminui o Filho ao nível de criatura, mas Ele é o Alfa e o Ômega. Marcião, você separa o Deus da justiça do Deus do amor, mas esses atributos não são contraditórios; eles são perfeitos e inseparáveis. Nestório, você fragmenta a pessoa de Cristo, mas Ele é uma só pessoa com duas naturezas unidas para nos salvar.
Vitório olhou para cada um, seus olhos brilhando com uma paixão que parecia vir de outra dimensão.
VITÓRIO:
— Vocês não enfrentaram a mim nesta noite. Suas heresias não foram refutadas por um homem, mas pela Palavra de Deus. Ela é viva, eficaz e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes (Hebreus 4:12). Vocês se esqueceram que “a palavra da cruz é loucura para os que perecem, mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus” (1 Coríntios 1:18).
Os heresiarcas permaneceram em silêncio, incapazes de rebater. A verdade das Escrituras havia exposto suas ideias como castelos de areia diante de uma onda avassaladora. Lucas deu um passo à frente, apontando para a saída da taberna.
VITÓRIO:
— Hoje, vocês foram confrontados pela verdade. Se continuarem em seus caminhos, não será a sabedoria de homens que vocês enfrentarão, mas o próprio Deus, o Justo Juiz. E como está escrito: “Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo” (Hebreus 10:31).
Os hereges começaram a levantar-se, um a um. Basílides foi o primeiro a sair, murmurando algo inaudível. Cerinto o seguiu, olhando para o chão, como se evitasse o olhar de Lucas. Ário hesitou, mas depois caminhou para a porta, com o semblante tenso. Marcião saiu logo atrás, segurando seus pergaminhos com mãos trêmulas. Nestório foi o último a deixar a taberna, lançando um olhar indecifrável antes de desaparecer na escuridão da noite.
Quando a porta rangeu ao fechar-se, Vitório voltou-se para o taberneiro, que havia assistido a tudo em silêncio, com uma mistura de fascinação e temor.
TABERNEIRO:
— Quem é você, afinal?
Vitório abriu um sorriso sereno e respondeu:
— Apenas um servo da Palavra, um portador da verdade que nunca falha.
Ele pegou seu pergaminho, colocou-o sob o braço e caminhou em direção à saída. Antes de desaparecer na noite, virou-se e disse:
VITÓRIO:
— “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar” (Mateus 24:35). Lembre-se disso, amigo.
A taberna ficou em silêncio novamente, mas parecia diferente. Como se o eco das palavras de Vitório de Bereia ainda vibrasse nas paredes. Os hereges haviam sido silenciados, e a verdade triunfara mais uma vez. O mundo seguiria ouvindo os ecos das heresias, mas naquela noite, naquele lugar, a luz da Palavra havia dissipado as trevas das falsas doutrinas.