Ressurreição DE mortos, DENTRE os mortos e DOS mortos
A doutrina da ressurreição é um pilar central da fé cristã, com implicações profundas para a escatologia e a esperança do crente. No contexto da teologia protestante, e em particular para a escatologia pentecostal, as expressões sobre a ressurreição do Novo Testamento, à primeira vista, podem parecer sinônimas. No entanto, sob uma análise cuidadosa, elas revelam distinções cruciais para a compreensão do plano divino da salvação e dos eventos futuros, especialmente no que tange à Segunda Vinda de Cristo dividida em fases.
Neste estudo vamos explorar as nuances entre as expressões “ressurreição de mortos”, “ressurreição dentre os mortos” e “ressurreição dos mortos”, argumentando que estas distinções são teologicamente válidas e essenciais para uma escatologia protestante pentecostal coerente, à luz das profecias bíblicas e da crença no arrebatamento da Igreja.
A Distinção Semântica e Teológica
1. Ressurreição “De Mortos” (ἐκ νεκρῶν – ek nekrōn)
Esta expressão é frequentemente utilizada em referência a um retorno à vida dentro da esfera temporal, sem que o indivíduo tenha passado pela glorificação do corpo. Exemplos notáveis incluem a ressurreição da filha de Jairo (Marcos 5:41-42), do filho da viúva de Naim (Lucas 7:14-15) e de Lázaro (João 11:43-44). Nesses casos, a pessoa ressuscitou, mas continuou sujeita à morte física posterior. O termo “de mortos” aqui sugere um estado de onde a pessoa foi trazida de volta, mas não necessariamente para uma nova e incorruptível existência.
Teologicamente, essas ressurreições funcionaram como sinais do poder de Deus e da autoridade de Cristo sobre a morte, prefigurando a Sua própria ressurreição, mas sem serem a ressurreição escatológica final dos justos ou injustos. Como bem observa o teólogo Wayne Grudem em sua Teologia Sistemática, esses eventos são milagres de reanimação, não de glorificação, e demonstram a soberania divina sobre a vida e a morte no presente.
2. Ressurreição “Dentre os Mortos” (ἐκ τῶν νεκρῶν – ek tōn nekrōn)
Esta expressão é empregada quase que exclusivamente para descrever a ressurreição de Jesus Cristo. Embora a preposição seja a mesma (ek), a inclusão do artigo definido (tōn) antes de “mortos” sugere uma distinção qualitativa e singular. Jesus não apenas “voltou da morte”, como Lázaro, mas Ele foi o primeiro a ressuscitar para uma vida incorruptível, glorificada e eterna. Sua ressurreição é o protótipo e a garantia da ressurreição dos crentes. Ele se levantou dentre a massa dos mortos, destacando-se como o “primogênito dentre os mortos” (Colossenses 1:18; Apocalipse 1:5).
A ressurreição dentre os mortos implica uma separação definitiva do domínio da morte e do pecado, e uma entrada em um novo tipo de existência, caracterizada pela imortalidade e glória. Esta é a ressurreição do Senhor, que inaugurou a “primeira ressurreição” e estabeleceu o padrão para a futura ressurreição dos crentes. Millard J. Erickson, em Christian Theology, ressalta que a ressurreição de Cristo é o evento mais significativo na história da salvação, pois valida Sua obra redentora e é a promessa da ressurreição dos que nEle creem.
3. Ressurreição “Dos Mortos” (τῶν νεκρῶν ἀνάστασις – tōn nekrōn anastasis)
Esta expressão, ou suas variações, é a mais comum para descrever a ressurreição geral no final dos tempos. Na escatologia protestante pentecostal, ela engloba as fases distintas da ressurreição final, em conformidade com a crença na volta de Cristo em duas fases e na ressurreição escalonada:
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A Primeira Ressurreição (Dos Justos): A doutrina pentecostal, com base em passagens como Apocalipse 20:5-6, entende a “primeira ressurreição” como sendo exclusiva para os crentes em Cristo. Esta, por sua vez, é frequentemente dividida em duas fases principais, ligadas às fases da Segunda Vinda de Cristo:
- Primeira Fase: O Arrebatamento da Igreja. Esta é a primeira parte da “primeira ressurreição. Conforme 1 Tessalonicenses 4:16-17, “Porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus;1 e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, a encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor”.
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- Aqui, os crentes (incluindo os salvos do Antigo Testamento) que já morreram ressuscitarão com corpos glorificados (a “ressurreição dos crentes mortos”), e os crentes que estiverem vivos no momento serão transformados e arrebatados (a “ressurreição dos vivos”). Este evento é secreto, não visível ao mundo, e marca o início da Tribulação para aqueles que ficaram na Terra. A perspectiva dispensacionalista, amplamente aceita no pentecostalismo, enfatiza que este evento remove a Igreja antes do período de juízo divino. J. Dwight Pentecost, detalha minuciosamente essa fase do arrebatamento como um evento distinto e pre-tribulacional.
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- Segunda Fase: No Final da Grande Tribulação e Início do Milênio. Esta é a segunda parte da “primeira ressurreição”, conforme Apocalipse 20:4-6. Refere-se à ressurreição dos santos que morreram durante a Grande Tribulação (os mártires) que ressuscitarão para reinar com Cristo durante o Milênio. Eles são considerados “bem-aventurados e santos” por terem parte na “primeira ressurreição”. Essa distinção temporal é crucial para a escatologia dispensacionalista, que vê diferentes grupos de pessoas sendo ressuscitados em momentos distintos ao longo do plano de Deus.
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A Segunda Ressurreição (Dos Injustos): Esta ressurreição ocorre após o Milênio, quando todos os que não tiveram parte na “primeira ressurreição” (os injustos) serão ressuscitados com seus corpos para comparecerem diante do Grande Trono Branco para o juízo final (Apocalipse 20:11-15). Esta é a “ressurreição dos mortos” para condenação, onde cada um será julgado conforme as suas obras, e aqueles cujos nomes não forem encontrados no Livro da Vida serão lançados no lago de fogo. Como afirmou Charles C. Ryrie esta é a ressurreição para o “juízo eterno”, em contraste com a ressurreição para a “vida eterna” dos crentes.
Portanto, a categoria “ressurreição dos mortos” abrange a totalidade da humanidade no final dos tempos, mas é claramente dividida em fases distintas de acordo com a fé e o destino final, refletindo a ordem divina dos eventos proféticos.
PONTOS DIFÍCEIS SOBRE RESSURREIÇÃO “DE” MORTOS
Questão 1: A Ressurreição de Muitos Santos na Morte de Cristo
Mateus 27:52-53 relata: “E abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos que dormiam foram ressuscitados; e, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram a muitos.”2
Este evento é único na narrativa bíblica e tem sido objeto de diversas interpretações. Sob a ótica das distinções apresentadas e da escatologia pentecostal, podemos entender este fenômeno como uma ressurreição “de mortos” com características especiais, mas não como a ressurreição glorificada do arrebatamento ou a ressurreição geral final.
- Natureza Transitória: Embora estes santos tenham ressuscitado, o texto não implica que seus corpos tenham sido glorificados ou se tornado imortais de forma permanente, como o de Cristo ou os corpos do arrebatamento. É mais provável que tenha sido uma ressurreição para uma vida terrena, com um propósito específico de testificar sobre o poder da ressurreição de Cristo. A narrativa não registra o que aconteceu com eles posteriormente, sugerindo que podem ter morrido novamente ou sido trasladados, mas sem a mesma natureza da ressurreição de Jesus ou da ressurreição dos crentes no arrebatamento. O teólogo R. T. France, em seu comentário sobre Mateus, sugere que este evento foi um “sinal escatológico antecipado”, um testemunho visível do que a morte e ressurreição de Cristo haviam conquistado.
- Significado Simbólico e Profético: Este evento serve como um poderoso sinal e antecipação da vitória de Cristo sobre a morte e o Hades. Ele demonstra que, com a morte e ressurreição de Jesus, o poder da morte foi quebrado, e que a ressurreição é uma realidade que está prestes a ser plenamente manifestada. É uma primícia ou “prelibação” da colheita vindoura da ressurreição dos justos. No contexto da escatologia pentecostal, pode ser vista como um prenúncio do arrebatamento e da ressurreição dos crentes, uma vez que a vitória de Cristo sobre a morte torna a ressurreição dos santos possível.
- Ordem Cronológica: O texto é explícito ao afirmar que eles “saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele“. Isso é crucial. A ressurreição de Cristo é o evento central e inaugural, o “primogênito dentre os mortos” (1 Coríntios 15:20, 23). Estes santos ressuscitaram por causa da Sua ressurreição, não antes, e não como um evento paralelo ou independente. A ressurreição desses santos foi um efeito imediato da vitória de Cristo sobre a morte, um testemunho visível do que a Sua morte e ressurreição haviam conquistado. É fundamental não confundir este evento com o arrebatamento da Igreja, que é um evento escatológico futuro e distinto na teologia pentecostal, envolvendo uma transformação e encontro nos ares com o Senhor.
Portanto, esta ressurreição de muitos santos pode ser entendida como um ato soberano de Deus, uma “ressurreição de mortos” com um propósito teofânico e profético, confirmando a primazia da ressurreição de Cristo e apontando para a futura ressurreição dos crentes, sem ser, contudo, a Primeira Ressurreição em sua plenitude escatológica.
Questão 2: Lázaro Após Quatro Dias Morto – Memória e Percepção
A narrativa da ressurreição de Lázaro (João 11) não fornece detalhes sobre o que ele experimentou durante os quatro dias em que esteve morto. Jesus simplesmente o chama de volta à vida. Qualquer afirmação sobre Lázaro se lembrar de algo ou ter visto alguma coisa seria puramente especulativa e não baseada em evidências bíblicas diretas.
- O Silêncio das Escrituras: A Bíblia é notavelmente silenciosa sobre a experiência dos mortos que são ressuscitados para esta vida terrena, seja Lázaro, a filha de Jairo ou o filho da viúva de Naim. Este silêncio é significativo. Se houvesse algo a ser revelado sobre o estado intermediário ou sobre a vida após a morte através dessas experiências, seria de se esperar que as Escrituras o registrassem. O foco das narrativas é o poder de Jesus sobre a morte, e não a experiência subjetiva dos ressuscitados. F. F. Bruce, em seus comentários sobre João, destaca que o propósito do milagre de Lázaro não é revelar a experiência da morte, mas sim demonstrar o poder de Cristo sobre ela.
- Estado Intermediário na Teologia Protestante Pentecostal: A teologia pentecostal, alinhada com a ortodoxia protestante, defende que, após a morte, a alma do crente vai imediatamente para a presença de Cristo (Filipenses 1:23; 2 Coríntios 5:8), enquanto o corpo aguarda a ressurreição (seja no arrebatamento ou na segunda fase da primeira ressurreição). No entanto, a natureza dessa experiência (consciência plena, percepção sensorial, etc.) no estado intermediário é um mistério além da nossa compreensão plena. Não há base bíblica para inferir que Lázaro, ou qualquer outro que foi ressuscitado “de mortos” para esta vida terrena, tenha retido memórias ou percepções do seu tempo no estado de morte. A ressurreição de Lázaro foi um retorno à sua vida física anterior, não uma transição para o estado glorificado ou para a vida eterna que aguarda os salvos. O teólogo Louis Berkhof, embora não pentecostal, em sua Teologia Sistemática, enfatiza que a Escritura não detalha a experiência subjetiva do estado intermediário, mas sim a certeza da presença de Cristo para o crente.
- Propósito da Narrativa: O propósito principal da ressurreição de Lázaro foi glorificar a Deus e testificar sobre a identidade de Jesus como a própria ressurreição e a vida (João 11:25). Os detalhes da experiência de Lázaro enquanto morto não são relevantes para este propósito teológico. Concentrar-se em especulações sobre a memória de Lázaro desviaria o foco do milagre de Cristo e de sua significância profética.
Portanto, em relação a Lázaro, devemos reconhecer os limites da revelação bíblica. A sabedoria teológica reside em afirmar o que a Bíblia afirma e permanecer em silêncio onde a Bíblia permanece em silêncio.
CONCLUSÃO
As distinções entre “ressurreição de mortos”, “ressurreição dentre os mortos” e “ressurreição dos mortos” não são meros exercícios semânticos, mas ferramentas cruciais para a compreensão da escatologia protestante pentecostal e da obra redentora de Cristo. A ressurreição “de mortos” aponta para o poder de Deus manifestado em milagres pontuais. A ressurreição “dentre os mortos” de Cristo é o evento singular e fundacional que garante a nossa própria ressurreição. E a ressurreição “dos mortos” abrange o grande evento escatológico da ressurreição final, dividida distintamente na “Primeira Ressurreição” (com suas duas fases, o arrebatamento e a ressurreição para o milênio) e na “Segunda Ressurreição” para o juízo final.
A compreensão dessas distinções, especialmente a distinção entre a ressurreição dos crentes mortos e vivos no arrebatamento e a ressurreição dos mártires da tribulação, permite-nos apreciar a riqueza da doutrina da ressurreição e alinhar nossa esperança profética com a verdade revelada nas Escrituras. Os eventos como a ressurreição dos santos em Mateus 27 e a de Lázaro são poderosos sinais e prefigurações, mas devem ser interpretados à luz da primazia e singularidade da ressurreição de Cristo, o “Primogênito dentre os mortos”, e como parte da cronologia profética que culmina no arrebatamento da Igreja e na instauração do Reino de Deus.