Este estudo é uma continuação de 2 partes anteriores:
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Dom de Línguas: Quando o Sagrado é Desfigurado
A banalização do dom de línguas não é apenas um problema litúrgico ou estético – é um perigo doutrinário sério. Quando um dom concedido pelo Espírito Santo é deturpado por ignorância, vaidade ou manipulação, surgem consequências devastadoras para a espiritualidade individual e coletiva da igreja. A seguir, destacamos três riscos doutrinários centrais desse desvio.
Espírito de Imitação: A Fé que Vira Teatro. Em muitos ambientes, especialmente entre jovens e novos convertidos, cria-se um ambiente onde falar em línguas é uma “obrigação invisível” para provar que alguém está “cheio do Espírito”. Essa pressão pode ser tão forte que muitos, mesmo sem experiência genuína, tentam imitar sons e gestos apenas para se sentirem aceitos ou espiritualmente validados.
É comum ouvirmos testemunhos de irmãos dizendo: “Eu comecei a falar o que os outros estavam falando, até que um dia fui batizado de verdade…” — ou seja, reconhecendo que por um tempo apenas repetiram sons sem convicção interna. Essa prática não é apenas fruto de ignorância, mas de um ambiente sem ensino bíblico claro e sem discipulado saudável.
O resultado é o surgimento de ajuntamentos onde todos parecem espirituais, mas poucos de fato experimentaram o poder transformador do Espírito. Gera-se uma liturgia barulhenta, mas com pouca profundidade. É um culto de ruídos — não de revelação.
Paulo adverte: “Meus irmãos, não sejais meninos no entendimento, mas sede meninos na malícia, e adultos no entendimento”. (1 Coríntios 14:20)
A maturidade espiritual não é medida por exteriorizações, mas pela capacidade de discernir e aplicar a Palavra. O culto em línguas não interpretadas, copiado mecanicamente, produz crentes miméticos, não discípulos cheios do Espírito.

A imitação vazia é um grande desserviço à fé pentecostal
O Efeito “Pedro e o Lobo” Espiritual. Outro efeito colateral da banalização é o descrédito do dom genuíno. Quando manifestações espirituais são constantemente manipuladas ou teatralizadas, a comunidade começa a desconfiar de todas elas, inclusive das verdadeiras. O povo de Deus, por autodefesa, desenvolve um ceticismo interno que rejeita qualquer sinal espiritual — mesmo quando o Espírito de fato está operando.
Essa desconfiança gera dois problemas gravíssimos:
- A frieza espiritual generalizada: o ambiente se torna resistente a qualquer manifestação do Espírito, por medo de cair no engano.
- A perda da sensibilidade ao sobrenatural: o discernimento é substituído pela dúvida crônica.
- É como a clássica fábula de Pedro e o Lobo: depois de tantas falsas manifestações, quando o lobo verdadeiro aparece, ninguém acredita mais.
O avivamento é enfraquecido. A oração perde fervor. E o povo se acostuma a cultos programados, previsíveis e seguros – mas sem o frescor do Espírito.
O pior não é quando o dom é combatido por ímpios, mas quando é ridicularizado pelos próprios crentes, por conta do mau uso interno. É como ver o maná sendo pisado no deserto – por mãos que um dia o receberam com gratidão.
Resistência ao Espírito Santo: Quando a Emoção Apaga a Presença
Paulo, em sua carta aos tessalonicenses (5:19-21), deixa três advertências claras:
- “Não apagueis o Espírito.
- Não desprezeis as profecias.
- Examinai tudo. Retende o bem.”
O verbo “apagar” (sbennumi, no grego) é o mesmo usado para “extinguir fogo”. Ou seja, é possível silenciar ou abafar a atuação do Espírito, não por falta de clamor, mas por irreverência.
Usar o Espírito como gatilho de aplauso, ou como plano de fundo emocional para validar falas humanas, é uma forma sutil de apagá-lo. Não o estamos negando abertamente – mas o estamos usando como ferramenta, e não como Senhor.
Quando o Espírito é invocado para causar impacto, mas não para transformar vidas; quando é citado para emocionar, mas não para santificar; quando é usado como selo retórico, mas não como guia da verdade — Ele se retira.
A consequência? Cultos cheios de volume, mas vazios de glória. Pregações eloquentes, mas sem unção verdadeira. Louvores ensaiados, mas sem quebrantamento.
É possível apagar o Espírito sem nunca ter negado a sua existência — apenas trocando a reverência pela performance.
A Banalização é Pecado? Sim. E não apenas um erro litúrgico ou uma falha de bom senso, mas um pecado com implicações sérias diante de Deus. Quando o que é santo é manipulado, falsificado ou usado para fins egoístas, a Escritura é clara: Deus não terá o culpado por inocente.

Usurpação da Glória Divina: O Louvor Desviado ao Pregador
“Eu sou o Senhor, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem o meu louvor às imagens de escultura“. (Isaías 42:8)
Quando o dom é usado como estratégia de autopromoção – para exaltar o pregador, o ministério, a agenda ou o evento – a glória que deveria ser de Deus é desviada. Isso é idolatria carismática.
O púlpito deixa de ser lugar de adoração, e se torna palco de vaidade espiritual. O dom é transformado em vitrine; o mover em marca; e o Espírito em figurante. Tudo gira em torno do homem “usado” — e não mais do Cristo exaltado.
Usurpar a glória de Deus é um pecado sério – foi o erro de Lúcifer (Is 14:13-14), de Herodes (At 12:22-23), e de tantos outros que caíram por tocar no que era exclusivo de Deus.
Mentira Espiritual: Falar o que o Céu não falou. A simulação de uma experiência espiritual – seja ela um falso batismo, uma “profecia” sem origem divina, ou um “falar em línguas” ensaiado – é, à luz das Escrituras, mentira espiritual.
“Disse então Pedro: Ananias, por que encheu Satanás o teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo…? Não mentiste aos homens, mas a Deus“. (Atos 5:3-4)
Ananias e Safira foram julgados não porque não ofertaram tudo – mas porque tentaram parecer mais espirituais do que eram. Isso é exatamente o que muitos fazem hoje: simulam espiritualidade para agradar o auditório, conquistar seguidores ou preservar reputações.
Mentir ao Espírito é um dos pecados mais graves registrados no Novo Testamento. E não é cometido apenas com palavras – mas também com atitudes, intenções e encenações.
Escândalo para os Pequenos: O Tropeço Que Tem Preço
“Qualquer, porém, que fizer tropeçar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma grande pedra de moinho, e fosse lançado no fundo do mar“. (Mateus 18:6)
Quando o uso irresponsável dos dons espirituais gera confusão nos mais novos na fé, ou leva crentes sinceros a imitar práticas que os afastam da verdade, isso é escândalo – e Jesus o trata com extrema seriedade.
Quantos jovens já abandonaram a fé por verem hipocrisia disfarçada de espiritualidade? Quantos visitantes saíram escandalizados de cultos onde o mover foi teatral? Quantos novos convertidos se frustraram ao tentar imitar manifestações que nunca compreenderam?
O dano causado à fé alheia tem peso eterno, e o Senhor Jesus diz que seria melhor morrer do que carregar tal culpa.
A banalização dos dons espirituais – especialmente o de línguas – não é algo leve, irrelevante ou secundário. É um ataque sutil à glória de Deus, um tropeço para os pequenos, uma afronta ao Espírito Santo, e uma ferida na pureza da Igreja.
Se queremos ver avivamento verdadeiro, precisamos primeiro chorar pelos abusos cometidos em nome da unção. Precisamos de líderes que corrijam com amor. De igrejas que ensinem com clareza. De crentes que busquem o dom — mas com temor e verdade.
Pois o Espírito Santo ainda quer agir. Mas Ele não habita em palcos de vaidade, e sim em altares de reverência.

Como a Igreja Pentecostal Deve Agir?
Diante da banalização crescente do dom de línguas — especialmente nos espaços digitais e em cultos desorientados — é urgente que a Igreja Pentecostal, fiel à sua tradição bíblica e ao avivamento genuíno, se posicione de forma corajosa, equilibrada e profundamente fundamentada nas Escrituras. A resposta não é ignorar os dons, mas restaurar sua dignidade e função.
Restauração do Ensino Bíblico sobre os Dons. O primeiro passo é retornar à base: ensinar a Palavra de Deus com clareza e profundidade. Os dons espirituais não podem ser tratados apenas em conferências emocionais ou experiências espontâneas — devem ser ensinados sistematicamente nas Escolas Bíblicas Dominicais, discipulados, formações ministeriais e púlpitos.
O dom de línguas, assim como os demais carismas, precisa ser:
- Explicado: O que é, como se manifesta, quais são suas finalidades e implicações.
- Contextualizado: Mostrado como funcionou na igreja primitiva e como se aplica hoje, sem anacronismos ou fórmulas rígidas.
- Regulado à luz da Palavra: Com base nos capítulos 12 a 14 de 1 Coríntios, para que sua prática não se torne confusão nem abuso.
- Exercido com reverência: Sem pressão emocional, sem simulação, sem necessidade de provar espiritualidade.
Ensinar sobre dons é ensinar sobre o próprio caráter de Deus, pois o Espírito que os concede é Santo, verdadeiro e fiel. Uma igreja bem ensinada é menos propensa à imitação, ao emocionalismo vazio e à carnalidade travestida de unção.
Resgate da Liturgia com Temor e Disciplina Espiritual
O culto pentecostal é marcado historicamente por liberdade, alegria e manifestações espontâneas do Espírito. Mas liberdade não é sinônimo de desordem. Paulo foi claro:
“Faça-se tudo com decência e ordem“. (1 Coríntios 14:40)
Não é necessário apagar as línguas, os cânticos espontâneos ou os momentos de quebrantamento para restaurar a reverência. O que é necessário é discernir quando o Espírito está agindo, e quando a alma ou a carne estão no controle.
Cultos onde todos falam em línguas simultaneamente, sem interpretação, ferem diretamente a instrução apostólica. Da mesma forma, pregações interrompidas por “gritos espirituais” não acompanhados de edificação ou clareza tornam-se teatros espirituais e não plataformas de transformação.
A liturgia pentecostal precisa ser cheia do Espírito e cheia da Palavra. O temor do Senhor é o princípio da sabedoria (Pv 9:10) – e sem ele, não há culto que agrade a Deus, por mais empolgante que seja para os homens.
Conscientização sobre Redes Sociais e Exposição Pública. O novo “templo” de muitos não é mais o púlpito, mas a câmera do celular. Pregadores, cantores, líderes e até membros comuns têm feito do TikTok e do Instagram seus palcos de manifestações espirituais, muitas vezes sem discernimento ou critério.
A liderança precisa educar espiritualmente os fiéis sobre o que deve (e o que não deve) ser compartilhado. Nem tudo o que é genuíno precisa ser gravado. E muito do que é gravado nem sempre é genuíno.
O Espírito atua também – e muitas vezes sobretudo – no secreto: “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai que está em secreto…” (Mateus 6:6)
A espetacularização do sagrado desvirtua o propósito do dom, escandaliza os de fora e enfraquece os de dentro. Devemos incentivar a busca pelo Espírito, não pela visibilidade. Pela presença, não pelos seguidores. Pela glória de Deus, não pelos algoritmos.

Experiências Bíblicas com Línguas: Uma Visão Equilibrada
Para que a igreja atual compreenda o equilíbrio e a beleza do dom de línguas, é essencial observar como ele se manifestou nas Escrituras. Os registros de Atos são claros, e cada evento tem um significado distinto, que aponta para um agir específico de Deus.
Pentecostes (Atos 2): O Início com Propósito Missionário. No Pentecostes, os discípulos falaram em línguas humanas conhecíveis – um milagre de comunicação sobrenatural que evidenciou a universalidade da mensagem do Evangelho.
- Não houve confusão, mas clareza.
- Não houve ego, mas glorificação de Deus.
- Não houve performance, mas pregação poderosa.
É importante notar: as línguas não foram um fim em si mesmas, mas um sinal que apontava para o derramar do Espírito e a inauguração da missão global da Igreja.
Cornélio e os Gentios (Atos 10): Sinal de Aceitação. Quando o Espírito desceu sobre a casa de Cornélio, os gentios falaram em línguas e glorificaram a Deus. Esse episódio não foi litúrgico, mas teológico: Deus estava dizendo a Pedro (e à Igreja) que os gentios também estavam incluídos na nova aliança.
- A glossolalia aqui confirmou inclusão, não provocou segregação.
- Foi espontânea, não fabricada.
- Confirmou a ação de Deus, não a performance de Pedro.
Éfeso (Atos 19): Renovação e Ativação Espiritual. Os discípulos de Éfeso, batizados por João Batista, foram batizados em nome de Jesus, receberam o Espírito Santo, falaram em línguas e profetizaram. Esse episódio mostra:
- Que o dom pode vir com diversidade de manifestações.
- Que profecia e línguas podem coexistir sem competição.
- Que o Espírito atua com liberdade, mas com direção.
A soma desses eventos mostra que o dom de línguas, quando genuíno, sempre aponta para algo maior: Cristo glorificado, a Igreja edificada e o Reino expandido.
Aplicações Práticas e Pastorais: Caminhos Para Restaurar o Temor e o Fogo
A restauração do dom de línguas não passa por repressão, mas por reforma. O objetivo não é silenciar o Espírito, mas limpar o altar para que Ele atue com santidade e glória. Eis alguns princípios práticos e pastorais que precisam ser resgatados:
Pastores devem corrigir excessos sem extinguir o Espírito: O zelo pela ordem não deve apagar o fogo do Céu, mas moldá-lo para edificação.
Os dons devem ser desejados, mas discernidos (1 Co 14:1): O equilíbrio bíblico é: “Desejai os dons espirituais, principalmente o de profetizar.” Não se trata de escolher entre dons, mas de aplicar cada um em seu lugar.
O verdadeiro mover do Espírito glorifica a Cristo, não ao pregador: Se a pregação termina com aplausos ao homem, não foi unção – foi ego. O Espírito testifica de Cristo (Jo 16:14).
Todo uso dos dons deve edificar a igreja, nunca confundi-la: A liturgia do Novo Testamento é orientada pela edificação. “Tudo seja feito para edificação” (1 Co 14:26).
Pentecostes Ainda Vive – Mas Precisa de Reverência!
O dom de línguas continua sendo uma dádiva celestial, poderosa e atual. É fogo, sim — mas fogo que precisa de altar limpo, lenha santa e direção divina. Não é acessório, não é atalho para status espiritual, nem trilha sonora para pregadores emocionados.
É tempo da Igreja Pentecostal reafirmar sua identidade com doutrina, temor e maturidade espiritual. O Espírito Santo quer continuar soprando – mas Ele sopra onde há espaço, onde há verdade, e onde há reverência.
Que cada dom seja devolvido ao seu lugar sagrado. E que cada crente, cheio do Espírito, fale – sim – mas fale com sabedoria, unção e submissão à Palavra.