As Duas Obras Distintas do Espírito
A jornada da fé cristã é intrinsecamente ligada à pessoa e obra do Espírito Santo. Desde o momento em que nossos corações são tocados pela mensagem do Evangelho até a capacitação para o serviço no Reino, é o Divino Consolador quem opera em nós e através de nós. Contudo, é fundamental compreendermos, com a clareza que as Escrituras nos oferecem, as distintas, porém complementares, manifestações do Seu poder e graça. Muitas vezes, na caminhada, podemos nos deparar com uma compreensão incompleta ou até mesmo uma fusão indevida de Suas diferentes operações.
O propósito deste estudo é lançar luz sobre duas obras magnas do Espírito Santo na vida do discípulo de Cristo: a primeira, o sopro regenerador que nos concede nova vida em Jesus, e a segunda, a chama pentecostal que nos reveste de poder para o testemunho eficaz. Ambas são cruciais, ambas emanam da promessa do Pai, e ambas moldam profundamente a nossa experiência e serviço cristão.
O SOPRO DA NOVA CRIAÇÃO: A REGENERAÇÃO PELO ESPÍRITO EM JOÃO 20.22
Após a crucificação, os discípulos de Jesus encontravam-se imersos em um mar de desolação, medo e incerteza. Aquele que era a sua esperança, o Messias prometido, havia sido morto. As portas trancadas, mencionadas no Evangelho de João (20.19), não eram apenas barreiras físicas, mas espelhos da clausura de suas almas. É neste cenário de corações abatidos que o Cristo ressurreto se manifesta, trazendo não apenas a Sua presença vitoriosa, mas uma palavra de paz e uma ação transformadora.
“Assoprou sobre eles”: O Assoprar da Vivificação Espiritual. No versículo 22 do capítulo 20 de João, lemos um relato singular e profundamente significativo: “E, havendo dito isso, assoprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo”. A palavra grega utilizada para “assoprou” é emphusao (ἐμφυσάω). Este termo não é trivial; ele ecoa de forma poderosa momentos cruciais da história da redenção e da criação.
Remontamos ao livro de Gênesis, onde, na formação do primeiro homem, lemos: “E formou o SENHOR Deus o homem do pó da terra e soprou em seus narizes o fôlego da vida” [Heb. neshamah, traduzido na Septuaginta por pnoē, mas conceitualmente ligado ao ato divino de infundir vida]; e o homem foi feito alma vivente” (Gn 2.7). O sopro divino foi o ato que distinguiu Adão, conferindo-lhe vida e a imagem de Deus.
De forma semelhante, no vale de ossos secos descrito pelo profeta Ezequiel, a restauração de Israel é simbolizada por um sopro divino: “Assim diz o Senhor JEOVÁ a estes ossos: Eis que farei entrar em vós o espírito [Heb. ruach, também traduzido por sopro, vento], e vivereis… E profetizei como ele me deu ordem; então, o espírito entrou neles, e viveram e se puseram em pé, um exército grande em extremo” (Ez 37.5,10). Aqui, emphusao é usado na Septuaginta (Ez 37.9) quando o profeta é instruído a clamar ao espírito para que assopre sobre os mortos.
Portanto, quando Jesus, o segundo Adão, o Senhor da vida, assopra sobre Seus discípulos, Ele está realizando um ato de nova criação. É a infusão da vida espiritual, a regeneração que os tornaria participantes da natureza divina (2 Pe 1.4). Este sopro não era meramente simbólico; era a transmissão da própria vida ressurreta de Cristo para dentro deles pelo Espírito.
“Recebei o Espírito Santo”: O Início da Habitação Interior e a Nova Criação. Acompanhando o ato de assoprar, Jesus ordena: “Recebei o Espírito Santo”. Este momento marca uma transição fundamental na relação dos discípulos com o Espírito. Se antes o Espírito operava sobre eles ou com eles de forma mais externa ou para tarefas específicas (como nos profetas do Antigo Testamento), agora Ele passaria a habitar neles de forma permanente e transformadora.
Esta recepção do Espírito é o cerne da regeneração. É o “nascer de novo” ou “nascer do Espírito” que Jesus havia explicado a Nicodemos (Jo 3.5-8). A partir deste instante, os discípulos começaram a experimentar o que o apóstolo Paulo mais tarde descreveria como sendo uma “nova criação“: “Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo” (2 Co 5.17).
Esta obra regeneradora é a base de toda a vida cristã. Sem ela, não há salvação, não há comunhão com Deus, não há verdadeira transformação. É o Espírito quem vivifica o espírito humano morto em delitos e pecados (Ef 2.1,5), concedendo fé para crer, arrependimento para se voltar a Deus e o selo da promessa (Ef 1.13). Esta foi, portanto, a primeira e fundamental obra do Espírito na vida dos discípulos no contexto da Nova Aliança estabelecida no sangue de Cristo e confirmada em Sua ressurreição.
A CHAMA DO PENTECOSTES: A CAPACITAÇÃO DE PODER PARA O TESTEMUNHO
Se o sopro em João 20.22 trouxe vida interior e regeneração, a promessa de Jesus ia além. Ele havia preparado Seus discípulos não apenas para serem salvos, mas para serem Suas testemunhas eficazes até os confins da terra. Para tal empreitada, uma nova e distinta obra do Espírito era necessária: o revestimento de poder do alto.
A Promessa do Pai e a Expectativa dos Discípulos. Antes de Sua ascensão, Jesus instruiu claramente Seus discípulos: “E eis que sobre vós envio a promessa de meu Pai; ficai, porém, na cidade de Jerusalém, até que do alto sejais revestidos de poder” (Lc 24.49). Em Atos, Lucas reitera essa instrução e promessa: “Porque, na verdade, João batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo, não muito depois destes dias… Mas recebereis a virtude [Gr. dunamis, poder] do Espírito Santo, que há de vir sobre vós; e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra” (At 1.5,8).
Estes discípulos, já regenerados pelo Espírito conforme vimos em João 20.22, agora aguardavam em obediência e expectativa por esta “promessa do Pai“, este “batismo no Espírito Santo“, este “revestimento de poder“. Eles já possuíam a vida do Espírito; agora ansiavam pela plenitude do Espírito para o serviço.
O Derramamento do Espírito: Uma Nova Dimensão da Experiência Espiritual. O capítulo 2 de Atos dos Apóstolos narra o cumprimento espetacular desta promessa. “Cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar; e, de repente, veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem” (At 2.1-4).
Observemos a natureza deste evento. Não se trata de uma repetição da regeneração, mas de uma nova e distinta experiência. A linguagem utilizada – “veio do céu um som“, “vento veemente“, “línguas de fogo“, “todos foram cheios” denota uma imersão, um batismo (baptizo – mergulhar, imergir) na potência do Espírito. Enquanto a regeneração é a entrada do Espírito no crente para lhe dar vida, o Batismo no Espírito Santo é a vinda do Espírito sobre o crente para lhe dar poder.
“Sereis Minhas Testemunhas”: O Propósito do Batismo no Espírito Santo. O propósito primordial desta experiência pentecostal, como Jesus mesmo declarou, era a capacitação para o testemunho. A dunamis do Espírito os transformaria de discípulos temerosos em proclamadores ousados do Evangelho. E foi exatamente o que aconteceu. Pedro, que negara Jesus, levanta-se e prega com tal intrepidez que quase três mil almas se convertem (At 2.41). Os apóstolos realizam sinais e prodígios (At 2.43; 5.12), e a Palavra de Deus se espalha com poder.
Esta capacitação não se limitou a uma eloquência humana, mas a uma unção divina que convencia pecadores, abria portas para o Evangelho e confirmava a Palavra com sinais seguindo-os (Mc 16.20). O falar em outras línguas, como evidência inicial e física, era uma manifestação sobrenatural dessa plenitude, um sinal para os incrédulos e uma edificação para a igreja nascente (1 Co 14.2, 22).
III. OBRAS DISTINTAS, PORÉM COMPLEMENTARES: A PLENITUDE DA VIDA NO ESPÍRITO
É crucial, para uma teologia bíblica sadia e uma experiência cristã plena, reconhecer tanto a distinção quanto a complementaridade dessas duas obras do Espírito.
Fundamento e Edificação. A regeneração pelo Espírito é o fundamento indispensável da vida cristã. Sem ela, não há base sobre a qual construir. É o novo nascimento que nos introduz na família de Deus e nos sela para a redenção. O Batismo no Espírito Santo, por sua vez, é a edificação sobre este fundamento, o revestimento de poder que nos equipa para a missão que Deus nos confiou. Um é para a vida, o outro para o serviço poderoso.
Não Exclusivas, Mas Sequenciais na Experiência de Muitos. Embora teologicamente distintas, a ordem experiencial pode variar. Na igreja primitiva, vemos casos como o de Cornélio e sua casa, onde a salvação e o Batismo no Espírito Santo parecem ocorrer de forma quase simultânea (At 10.44-47). Em outros, como os discípulos de Éfeso, que já eram crentes (“Senhor, tu és o Cristo“), Paulo lhes pergunta: “Recebestes vós já o Espírito Santo quando crestes?“. Ao saberem apenas do batismo de João, foram batizados em nome de Jesus, e, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo, e falavam línguas e profetizavam (At 19.1-6). Isso demonstra que a regeneração precede, mas o batismo no Espírito é uma experiência subsequente e distinta, a ser buscada.
A tradição pentecostal clássica, fundamentada nestas passagens, entende que, embora todos os salvos possuam o Espírito Santo (Rm 8.9), nem todos foram batizados no Espírito Santo, uma experiência que se manifesta com poder e, frequentemente, com a evidência do falar em outras línguas.
A Unidade da Pessoa e Obra do Espírito. Apesar das manifestações distintas – o sopro que regenera e a chama que capacita – é o mesmo e único Espírito Santo quem opera todas as coisas segundo o Seu querer (1 Co 12.11). Ambas as obras glorificam a Cristo, edificam a Igreja e promovem o Reino de Deus. Não há competição entre elas, mas uma sinergia divina para a plenitude da vida e do ministério do crente.
A RELEVÂNCIA CONTÍNUA PARA O DISCÍPULO CONTEMPORÂNEO
Amados, esta compreensão não é um mero exercício teológico para o passado; ela possui implicações vitais para cada discípulo de Cristo hoje.
A Necessidade da Regeneração para a Salvação. Jamais podemos minimizar a absoluta necessidade da regeneração. Como Jesus afirmou categoricamente: “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” (Jo 3.5). Esta é a porta de entrada para a salvação, a obra inicial e indispensável do Espírito em todo pecador arrependido.
A Busca pela Plenitude do Espírito para um Testemunho Eficaz. Contudo, o chamado de Deus para nós não se encerra na salvação. Somos chamados a ser testemunhas vibrantes e eficazes em um mundo que jaz no maligno. Os desafios são imensos, e nossas forças humanas são insuficientes.
Portanto, a busca pelo Batismo no Espírito Santo e pela contínua plenitude do Espírito (Ef 5.18 – “enchei-vos do Espírito“) não é uma opção, mas uma necessidade imperiosa para quem deseja viver uma vida cristã vitoriosa e frutífera. É esta plenitude que nos concede ousadia, discernimento, poder sobre as hostes inimigas e a capacidade sobrenatural para cumprir a Grande Comissão.
Vivendo a Trajetória Completa: Do Sopro à Chama. A trajetória completa do discípulo, conforme delineada nas Escrituras, envolve tanto o sopro regenerador quanto a chama pentecostal. É um convite para que cada crente não se contente apenas com a experiência inicial da salvação, mas anseie e busque diligentemente o revestimento de poder do alto. Que experimentemos a vida do Espírito em nós e o poder do Espírito sobre nós.