O tempo passou, o culto congregacional mudou — e, no caminho, muitos de nós nos perdemos. Perdidos não no sentido de abandono da comunhão ou de ausência nos cultos — continuamos presentes, com nomes no rol de membros, mãos erguidas e vozes afinadas. Mas nos perdemos do verdadeiro sentido do que é cultuar.
Na intersecção entre liturgia e devoção, tomamos a rota mais curta, porém mais rasa: a do culto-show. Erguemos palcos, acendemos luzes coloridas que contrastam com paredes pretas – afinal, o culto precisa ser “instagramável”, visível e atraente. É o streaming religioso com crentes desejando “consumí-lo” no cardápio das plataformas digitais – e nesta toada o culto acabou tornando-se num produto para o crente (com legítimas exceções, claro). Coreografamos experiências, organizamos espetáculos para nos emocionar e no fim — chamamos isso de adoração.
E o templo? Acredito que para o evangélico médio aqui temos uma “coisificação” do culto e um pino geográfico de adoração fixado (do tipo: se não vai ou não está no templo, então não adora). O problema obviamente não é o templo – é o que lideranças ávidas por dinheiro e status social tem feito com e a partir dele. Estão convertendo o local num shopping espiritual dos desejos mais terrenos e egoístas de um crescente número de cristãos imaturos na fé.
Mas respire. Não estamos aqui para lançar julgamentos fáceis. Antes, este artigo é um convite à calma. À razão. À teologia. À verdade.
Com base em João 4, vamos refletir sobre a desconexão crescente entre o culto contemporâneo e o modelo de adoração revelado por Cristo à mulher samaritana.
- E se estivermos errando feio, mas chamando isso de “avivamento”?
- E se, no anseio de adorar mais intensamente, estivermos adorando menos verdadeiramente?
Venha comigo, vamos aos fatos que nos desafiam. Vamos à Palavra. Vamos ao poço.

UMA REVELAÇÃO QUE MUDOU TUDO
À beira de um poço esquecido, em uma aldeia samaritana desprezada pelos judeus, Jesus realizou algo que jamais acontecera dentro do templo. Revelou a identidade do verdadeiro adorador. João 4 não é apenas um capítulo evangelístico. É um marco teológico. É o local onde o sistema antigo se dissolve e um novo entendimento sobre Deus e a adoração nasce.
“Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque o Pai procura a tais que assim o adorem.” (João 4:23)
Essa afirmação não pode ser lida de forma superficial. Jesus não apenas apresenta um novo modelo de adoração – Ele desautoriza os anteriores. Tanto o monte samaritano quanto o templo judaico se tornam obsoletos diante daquilo que é espiritual e verdadeiro.
Contudo, o que vemos hoje nas comunidades cristãs espalhadas pelo mundo é, muitas vezes, um retorno às sombras do que Cristo substituiu. Uma liturgia baseada em espaços físicos, dependente de mediações humanas, revestida de estética emocional e, por vezes, distante da essência evangélica.
II. O ENCONTRO NO POÇO: ONDE A ADORAÇÃO FOI REDEFINIDA
1. A mulher, o poço e a provocação. Jesus não evitou o caminho de Samaria. Ele o escolheu. E ao se assentar junto ao poço de Jacó, à hora sexta (meio-dia), Ele preparou o palco para desconstruir séculos de religiosidade.
A mulher samaritana, ao confrontá-Lo com a disputa entre o monte e Jerusalém, refletia a obsessão religiosa pelo local sagrado. Sua dúvida era legítima: “Onde Deus realmente está? Onde se deve adorá-Lo?”
2. A resposta revolucionária. “Nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai…” (Jo 4:21)
Com essa frase, Jesus destrói dois séculos de rivalidade entre judeus e samaritanos. Ele declara que o lugar físico perdeu relevância. Deus agora deseja adoradores onde estiverem, desde que estejam em espírito e em verdade.
Não se trata de abolir a adoração pública, mas de redirecioná-la do ritual para o relacionamento, do lugar para o espírito, da tradição para a verdade. A adoração não seria mais um evento esporádico, mas um estado contínuo do coração.

III. A IGREJA LOCAL: ENTRE A NECESSIDADE E O PERIGO DA INSTITUCIONALIZAÇÃO
Preciso ser cuidadoso aqui. A crítica à religiosidade mecânica não é uma crítica à igreja local. O Novo Testamento deixa claro que a comunhão dos santos é vital (Hebreus 10:25; Atos 2:42). A igreja local é o espaço do ensino, da mutualidade, do serviço, da disciplina, da missão.
Entretanto, a mesma igreja que é o corpo vivo de Cristo pode, quando desconectada da essência do Evangelho, tornar-se um corpo institucional, burocrático e centrado em si mesmo. E é contra essa distorção que precisamos nos levantar.
1. Templocentrismo. Quando a igreja se torna mais apaixonada por sua sede, seus cultos, sua liturgia e sua estética do que por Cristo, temos um caso claro de templocentrismo. Voltamos a buscar no “templo” o que Jesus ensinou a buscar no espírito.
2. Substituição da comunhão pelo consumo. Nos tornamos consumidores de culto, não participantes da missão. Queremos ser alimentados, mas não partir o pão. Buscamos milagres, mas fugimos do discipulado. Assim, o templo vira palco, o pastor vira performer, e o povo, plateia. O que era para ser igreja vira show. O que era para ser corpo, vira evento.
3. O paradoxo da presença. Muitos dizem: “Sinta a presença de Deus neste lugar!”. Mas esquecem que a presença de Deus não é geográfica, é espiritual. O Espírito Santo não está confinado em templos — Ele habita em cada crente (1 Coríntios 3:16).
Logo, não vamos ao templo para encontrar Deus. Vamos porque Ele já habita em nós, e desejamos adorá-Lo juntos com os irmãos. É um movimento de comunhão, não de peregrinação.
IV. A RELIGIÃO MODERNA: A ENCENAÇÃO DA FÉ
A adoração no século XXI muitas vezes se parece mais com uma performance que com uma entrega. O louvor se profissionalizou. A mensagem se tornou motivacional. A oração se converteu em grito coletivo.
1. A espetacularização do culto. Luzes, fumaça, frases de efeito. Cantores que mais parecem artistas. Ministrações que buscam agradar a audiência. Tudo muito bonito — mas será que é verdadeiro? Não se trata de julgar a forma. Trata-se de questionar a essência. Adoração sem quebrantamento é som sem vida. Liturgia sem presença é ritual vazio.
2. A necessidade de presença contínua no templo. Por que tantas lideranças hoje insistem que os membros “precisam estar no templo o máximo possível”? Algumas possíveis razões:
- Medo da autonomia espiritual dos crentes. Se aprenderem a andar com Deus no secreto, talvez questionem as estruturas.
- Controle social travestido de zelo espiritual. Um povo sempre reunido é mais fácil de guiar — ou manipular.
- Dependência financeira. Eventos e campanhas lotadas mantêm a estrutura funcionando. Templos custam caro. E, às vezes, o zelo é menos espiritual do que financeiro.
- Prestígio institucional. Uma igreja cheia é símbolo de sucesso. Poucos líderes admitem, mas o ego institucional é real.

V. O PERIGO INVERSO: O ISOLAMENTO DOS DESIGREJADOS
O outro extremo do problema é igualmente perigoso: os que rejeitam completamente a igreja local. Feridos por experiências ruins, muitos crentes se isolam, defendendo uma fé desinstitucionalizada, solitária, e, por vezes, arrogante.
Mas isso não é o modelo bíblico. A igreja é imperfeita, sim. Mas é o corpo de Cristo. É nela que somos moldados, confrontados, edificados e enviados. É na comunhão que amadurecemos.
A adoração verdadeira não foge da igreja, mas também não depende dela para existir. Ela nasce no secreto e se manifesta no coletivo. É pessoal e comunitária.
VI. VOLTANDO AO CENTRO: O QUE JESUS REALMENTE ENSINOU SOBRE ADORAÇÃO?
A fala de Jesus é clara. O Pai procura verdadeiros adoradores. Não diz que procura cultos lotados, templos belos, ou programas bem elaborados. Procura adoradores. Pessoas. Corações.
O termo grego para “adorar” em João 4 é proskuneo — que significa “prostrar-se, beijar reverentemente, submeter-se”. Não é sobre cantar bem. É sobre render-se totalmente. E o termo para “verdade” é aletheia — que implica autenticidade, realidade interior, sinceridade. Não se pode adorar verdadeiramente com máscaras.
Logo, adoração em espírito e em verdade é:
- Prostrar-se com o coração, não só com o corpo.
- Falar com Deus com transparência, não com fórmulas.
- Submeter-se à vontade divina, não manipular promessas.
- Entrar em comunhão com o Pai no secreto, não apenas em ajuntamentos.
VII. UM DESAFIO AOS LÍDERES
Se você é líder, pare e reflita: Você está formando discípulos ou dependentes? Você incentiva a vida devocional pessoal dos crentes ou os condiciona à sua presença, ao seu evento, à sua agenda?
O verdadeiro líder espiritual é aquele que conduz pessoas a Deus — não a si mesmo. Jesus não fundou uma agenda de eventos, mas um Reino. Ele não formou plateias, mas discípulos. Ele não vendia experiências, Ele doava vida.
VIII. UMA REFORMA URGENTE: ADORADORES QUE NÃO DEPENDEM DE PALCOS
Está na hora de uma reforma prática:
- Redescobrir o valor do quarto fechado (Mt 6:6). Oração não é apenas no monte, é também no quarto. Adoração não é só no templo, é também na cozinha, no trânsito, no silêncio.
- Resgatar o sacerdócio de todos os crentes (1 Pe 2:9). Todo crente tem acesso ao Pai. Não precisamos de “intermediários” espirituais. Jesus é o único Mediador (1Tm 2:5).
- Valorizar a igreja local como corpo, não como empresa. Menos estratégias de marketing. Mais compaixão, comunhão, ensino e verdade.
- Desencenar o culto. Tirem os palcos. Acendam as luzes. Chamem pelo Espírito. Voltem à cruz.
- Formar crentes que oram em secreto, leem a Palavra sozinhos, jejuam em silêncio e vivem para a glória de Deus — dentro e fora do templo.
IX. ENTRE O POÇO E O PALCO, ESCOLHA O PAI
Jesus nos espera novamente — não no monte, não no palco, mas junto ao poço. Um local simples. Uma conversa sincera. Um coração sedento. E ali, Ele oferece água viva — não show, não campanhas, não performances. Mas vida.
O Pai continua procurando verdadeiros adoradores. Será que Ele nos encontra? Ou será que nos perdemos entre o som dos alto-falantes e as agendas das catedrais? Está na hora de voltar. Não ao monte. Não a Jerusalém. Mas ao espírito e à verdade.