Questão: A Mulher Samaritana que aparece em diálogo com Jesus em João 4 era uma prostituta?
Entre as figuras femininas mais marcantes do Novo Testamento, a mulher samaritana narrada em João 4 tem provocado interpretações variadas. Muitos a retratam como uma prostituta, outros como uma mulher sedenta de amor, e ainda há os que a veem como uma evangelista precoce. Mas, à luz da teologia bíblica, da cultura do século I e da própria narrativa do evangelho de João, será que ela era realmente uma prostituta?
- O TEXTO DE JOÃO 4 DIZ QUE A MULHER SAMARITANA ERA UMA PROSTITUTA?
Não. Em nenhuma parte do texto bíblico há a palavra “prostituta”, “meretriz” ou “pecadora pública” (como ocorre com a mulher de Lucas 7:37 ou com Raabe em Josué 2:1). A narrativa de João 4 apresenta uma mulher que teve cinco maridos e que agora estava com um homem que não era seu marido (João 4:18), mas isso não equivale diretamente à prostituição.
A associação entre múltiplos casamentos e prostituição é fruto de leituras culturais anacrônicas e, muitas vezes, preconceituosas.
- COMO A CULTURA JUDAICA E SAMARITANA VIA O CASAMENTO?
No contexto do Antigo Oriente e do judaísmo do Segundo Templo, o casamento era central para a identidade da mulher, mas os homens tinham o poder quase absoluto sobre o divórcio. Basta lembrar do ensinamento de Jesus sobre isso em Mateus 19:8, onde Ele critica a dureza do coração masculino ao se divorciar com facilidade.
É possível, portanto, que a mulher samaritana tenha sido:
- Divorciada múltiplas vezes (por decisões dos maridos);
- Viúva em algumas ocasiões;
- E, por questões sociais ou econômicas, tenha passado a viver com um homem sem formalizar o matrimônio.
Viver com um homem sem casamento não era o ideal, mas não é o mesmo que ser prostituta. O texto não fala de prostituição comercial, mas de relacionamentos matrimoniais e um atual relacionamento irregular.

- A CONVERSA DE JESUS COM ELA ACUSA OU RESTAURA?
Cristo não trata essa mulher com condenação, mas com compaixão e verdade. Ele:
- Revela-lhe sua realidade de vida (João 4:18);
- Oferece-lhe a água viva da salvação (João 4:10-14);
- Revela-se a ela como o Messias (João 4:26).
Ao contrário do que se faria com uma prostituta segundo a lei (como em João 8:3-5), Jesus não lhe ordena “vai e não peques mais”, como fez com a adúltera, o que reforça que sua situação, embora difícil, não era caracterizada como pecado sexual escancarado.
- O OLHAR DOS SAMARITANOS E DA TRADIÇÃO
A mulher era samaritana. Os samaritanos criam apenas no Pentateuco (os cinco primeiros livros de Moisés), e tinham sua própria versão da Lei. Viviam sob constantes tensões com os judeus e possuíam práticas religiosas distintas.
O casamento entre os samaritanos seguia regras próprias, e, embora não se tenha registros extensos como os dos judeus, a instabilidade conjugal não implicava necessariamente prostituição. As razões para múltiplos casamentos ou convivência irregular podiam incluir infertilidade, abandono, viuvez e desamparo social.
Aliás, não há no Talmude, nem nas tradições samaritana ou judaica, qualquer menção direta de que a mulher de João 4 fosse uma zonah (זונה), palavra hebraica comum para prostituta.
- A EVOLUÇÃO DO OLHAR CRISTÃO SOBRE ELA
Durante séculos, muitos intérpretes da igreja ocidental a identificaram com o arquétipo da pecadora sexual, por comparação com outras mulheres do Novo Testamento (como Maria Madalena, que também foi equivocadamente rotulada como prostituta).

Mas, vejamos o que grandes teólogos tem a dizer a respeito:
- Craig S. Keener – “Comentário Bíblico do Novo Testamento”
Página: 491 (Edição em português pela Editora Vida)
- Excerto: “O texto não diz que ela era uma adúltera ou uma prostituta. Muitos comentaristas antigos, influenciados pela tradição e não pelo texto, assumiram isso. No entanto, ter tido vários maridos pode muito bem ser o resultado de uma série de divórcios ou viuvez, ambos comuns e muitas vezes não sob controle da mulher.”
- Ben Witherington III – “O Evangelho de João”
Página: 131 (Edição brasileira pela Editora Vida Acadêmica)
- Excerto: “Não há qualquer insinuação direta no texto de que ela era uma prostituta. Essa suposição reflete mais um julgamento moral posterior do que uma inferência legítima do texto.”
- F. F. Bruce – “O Evangelho de João”
Página: 112 (Edição da Editora Vida Nova)
- Excerto: “A vida conjugal dessa mulher foi marcada por instabilidade. No entanto, não temos qualquer evidência de que fosse uma mulher de vida leviana, como frequentemente é retratada.”
- D. A. Carson – “O Comentário de João” (Série NICT)
Página: 223 (Edição da Shedd Publicações)
- Excerto: “Embora ela estivesse agora em um relacionamento irregular, não há evidência suficiente para classificá-la como promíscua ou prostituta. Tal julgamento não se baseia no texto, mas em suposições culturais posteriores.”
- Leon Morris – “O Evangelho segundo João”
Página: 229 (Editora Vida Nova)
- Excerto: “Nada no texto exige que ela seja interpretada como uma mulher imoral. É bem possível que tenha sido vítima de uma série de tragédias conjugais, o que era comum no contexto social da época.”
Todas essas fontes teológicas sustentam que não há base exegética nem histórica para considerar a mulher samaritana como prostituta. A maioria dos estudiosos sérios reconhece que essa interpretação deriva de preconceitos culturais, tradições orais ou má leitura do texto sagrado.

- EVIDÊNCIAS DE TRANSFORMAÇÃO
Um forte indício de que não se trata de uma mulher vulgar está na maneira como ela responde a Jesus:
- Faz perguntas teológicas profundas (João 4:20);
- Demonstra reverência ao Messias prometido (João 4:25);
- Deixa seu cântaro para anunciar a outros (João 4:28), atitude simbólica de abandono do passado;
- E leva muitos à fé em Jesus (João 4:39-42).
Esse comportamento não combina com o estigma da prostituição, mas com uma mulher ferida que encontrou redenção.
A mulher samaritana não era uma prostituta. Era, sim, uma mulher marcada por relacionamentos fracassados, dor social e espiritual, mas que teve sua vida transformada pelo encontro com Cristo.
- A narrativa de João 4 nos ensina que:
- Jesus quebra barreiras religiosas, sociais e de gênero;
- A verdade pode ser libertadora quando dita com graça;
- O passado não define o destino daqueles que encontram o Salvador.
Que possamos olhar para essa mulher não com olhos preconceituosos, mas com a lente de Cristo: não para rotular, mas para restaurar.