O senador Ernani do Amaral Peixoto (1904-1989) fez parte da bancada do Rio de Janeiro entre 1971 e 1987 e foi um político bastante representativo do Senado do século passado.
Fazendeiro com diploma de engenheiro e oficial militar, Amaral Peixoto havia sido fundador do antigo PSD, governador de seu estado, deputado federal, ministro de Juscelino Kubitschek, membro do Tribunal de Contas da União e embaixador nos Estados Unidos. Seu sogro era ninguém menos que Getúlio Vargas.
Hoje, Amaral Peixoto não seria mais o típico senador da República. O Senado, nas últimas décadas, deixou de ser aquela instituição formada exclusivamente por representantes da elite econômica ou política do Brasil.
O senador Paulo Paim (PT-RS), por exemplo, foi metalúrgico e líder sindical no Rio Grande do Sul. A ex-senadora Benedita da Silva, camelô e empregada doméstica no Rio de Janeiro. A ex-senadora Marina Silva, seringueira e também doméstica no Acre. Os três são negros.
Após a redemocratização do país, em 1985, passaram a ocupar assentos no Senado tanto pessoas oriundas das classes trabalhadoras quanto indivíduos sem cargos eletivos prévios no currículo. Essa mudança deixou a Casa mais heterogênea e próxima do perfil da própria sociedade.
Outro caso ilustrativo é o do ex-senador Paulo Rocha, que atuou como trabalhador gráfico no Pará e foi representante sindical da categoria. Da mesma forma que Paim, ele estudou só até o ensino médio. Rocha afirma:
— Até a virada dos anos 1970 para os anos 1980 existia a concepção de que só deveria entrar na política quem era muito rico ou tinha diploma de doutor. Essa restrição era ainda mais forte no Senado, um lugar que era da elite econômica e da elite que já tinha ocupado o poder nos estados.
Ele hoje está à frente da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Benedita é deputada federal. Marina chefia o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
Senador desde 2003, Paulo Paim diz que a redemocratização provocou grandes mudanças não apenas na Presidência da República, mas também no Congresso Nacional:
— A partir da decadência e do fim da ditadura militar, o Brasil deu um salto em termos de participação popular. Resgatamos a democracia, a liberdade, o direito de pensar e de ser ouvido. Surgiram candidatos vindos do movimento sindical e popular, dos núcleos de base, do campo, das florestas, dos sertões.
Paim chegou a Brasília em 1987, como deputado constituinte. Ele lembra:
— Éramos muito poucos os que traziam para o Congresso Nacional a voz das ruas e periferias, dos humildes e necessitados. Historicamente, o Poder Legislativo brasileiro é elitista, um ambiente de endinheirados.
Um estudo dos cientistas políticos Pedro Neiva e Maurício Izumi publicado em 2014 na Revista Brasileira de Ciências Sociais mostrou que, de fato, o Senado se tornou uma instituição menos elitista na Nova República (1985-hoje). Para chegar a essa conclusão, eles analisaram a ocupação dos senadores.
Quando o Senado foi inaugurado, em 1826, todos os seus 49 parlamentares exerciam as profissões mais privilegiadas do Brasil imperial. Eles eram, basicamente, juízes, advogados, oficiais militares, padres, fazendeiros e médicos.
Além disso, quase a metade deles ostentava algum título de nobreza, como o de barão.
A pesquisa mostra que a proporção de juízes caiu gradativamente ao longo destes 200 anos. A de proprietários rurais e a de militares graduados também.
Eram militares, por exemplo, os senadores Duque de Caxias e Jarbas Passarinho. No Segundo Reinado (1840-1889), Caxias foi chefe das tropas na Guerra do Paraguai e também primeiro-ministro do Império. Passarinho, por sua vez, foi ministro na ditadura militar e no início da Nova República.
Ao mesmo tempo, segundo o estudo, houve nestes 200 anos um aumento da presença de empresários urbanos e da categoria “outros”, em que se incluem profissões as mais diversas, como as de policial, bancário, economista, assistente social e trabalhador manual.
De acordo com Pedro Neiva, um dos autores do estudo e professor na Universidade de Brasília (UnB), a chegada dos trabalhadores aos espaços de poder foi também motivada pela crise econômica da década de 1980 e do início dos anos 1990, que achatou salários e cortou empregos. Os eleitores buscaram políticos preocupados com esse drama social.
Neiva explica que a “deselitização” do Senado tem efeitos práticos na sociedade:
— A mudança na composição afeta a atuação do Legislativo. Questões sociais e trabalhistas passam a ser mais olhadas. Afinal de contas, quem defende o interesse do trabalhador não é o empresário nem o representante do agronegócio. É o próprio trabalhador.
Paulo Paim é autor do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288, de 2010). Benedita da Silva, da lei que proibiu os patrões de exigir teste de gravidez das candidatas a vaga de trabalho (Lei 9.029, de 1995). Paulo Rocha, da lei que tipificou o trabalho análogo à escravidão como crime (Lei 9.777, de 1998).
Outro indicador da mudança no perfil do Senado é a presença de parlamentares que nunca haviam ocupado cargo eletivo. Entre eles, no atual momento, estão Styvenson Valentim (Podemos-RN) e Leila Barros (PDT-DF), que ganharam notoriedade respectivamente como policial militar em Natal e jogadora de vôlei da equipe nacional.
A liberação do voto para os analfabetos ajuda a explicar o perfil mais popular dos senadores na Nova República. Até 1985, quem não sabia ler e escrever não tinha direito de escolher os governantes. Na época, de acordo com o Censo de 1980, 25% da população com 15 anos de idade ou mais era analfabeta. Essas pessoas estavam mais identificadas com candidatos oriundos das classes sociais mais baixas.
O consultor legislativo Paulo Mohn, que trabalha no Senado na área de direito constitucional, afirma ser natural que os senadores sejam, em geral, mais conservadores que os deputados federais. Isso, segundo ele, deve-se às exigências constitucionais para a entrada em cada Casa.
Enquanto a eleição para a Câmara é proporcional, para o Senado é majoritária. Cada estado pode ter de 8 a 70 deputados federais, a depender do tamanho da população, enquanto todos têm 3 senadores. Para eleger-se deputado federal, é preciso ter no mínimo 21 anos de idade. Para senador, 35 anos. A cada quatro anos, a Câmara é renovada por inteiro e o Senado, apenas parcialmente.
Tais diferenças inibem a diversidade de perfis no Senado e a favorecem na Câmara.
— É natural e desejável que seja assim — explica Mohn, autor do livro Processo Legislativo Bicameral no Brasil: como as câmaras resolvem suas divergências na elaboração legislativa? (Editora GZ). — No sistema de freios e contrapesos da nossa democracia, sendo o Senado diferente da Câmara, uma Casa pode barrar os excessos da outra e também destravar a moderação exagerada da outra.
De acordo com ele, um Senado heterogêneo, com mais representantes das classes populares, não compromete o sistema interno de freios e contrapesos do Poder Legislativo:
— Nos séculos 19 e 20, a grande crítica que se fazia ao Senado era a de que ele, com uma atuação mais conservadora, dificultava as transformações sociais. Agora, quando se democratiza o acesso à Casa e se diversifica a sua representação, o Senado passa até mesmo a dar início às pautas progressistas. Há algumas décadas, isso era impensável.
O senador Paulo Paim avalia que, apesar dos passos já dados, o Senado ainda tem muito a avançar até que consiga refletir toda a diversidade da sociedade brasileira. Ele lembra que mais de 55% da população nacional é negra, o que não corresponde à composição da Casa. Paim explica por que isso seria importante:
— Quanto mais representantes populares tivermos na política, em cargos públicos e mandatos parlamentares, mais precisa será a elaboração de políticas públicas voltadas para os mais pobres, gente que não tem água potável para beber, moradia, educação e saúde de qualidade, salário e emprego decente.