No dia 15 de julho, o Código Eleitoral completou 60 anos. Um marco no direito eleitoral no Brasil, ele trouxe importantes mudanças para as eleições no país. Instituiu o voto obrigatório para homens e mulheres, sem distinções. Permitiu que brasileiros que estivessem no exterior pudessem votar para presidente e vice. Deu mais poder ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que passou a ser o responsável por organizar e criar regras para as eleições. Criou a Corregedoria-Geral para fiscalizar os serviços eleitorais em todo o território nacional. Mesmo elaborado durante a ditadura militar, o texto rege parte essencial do processo eleitoral brasileiro até hoje.
O pesquisador da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) Ademar Costa Filho avalia que, embora a norma de 1965 tenha surgido em um contexto autoritário, o texto acabou aproximando a população do processo democrático, ao tornar obrigatório o alistamento eleitoral aos 18 anos.
— Talvez, sem pensar, os militares possibilitaram a instituição de confiança entre o eleitor e a Justiça Eleitoral.
Em outras inovações, o Código foi o primeiro a reunir de forma consolidada os crimes eleitorais e regras mais rigorosas de inelegibilidade, o que representou um passo importante na moralização das candidaturas. Também trouxe as primeiras regras para financiamento de campanhas, ainda que rudimentares, e propaganda eleitoral. Durante a ditadura, no entanto, a atuação da Justiça Eleitoral ficou limitada pelas regras das Constituições de 1967 e de 1969.
Apuração dos votos da eleição para o Congresso em 1966
Correio da Manhã/Arquivo Nacional
Quinto Código
Antes de 1965, o Brasil teve quatro códigos para organizar as eleições:
- República Velha: A Lei 3.139, de 1916, não era muito abrangente: apenas regulamentava o alistamento dos eleitores, feito pelos juízes de direito.
- Governo provisório: Já o Decreto 21.076, de 1932, produzido durante o governo provisório de Getúlio Vargas após a Revolução de 1930, trouxe avanços importantes, como a criação de uma Justiça Eleitoral independente e o direito ao voto feminino — mas, naquela época, só mulheres com emprego formal eram obrigadas a se alistar.
- Estado Novo: O Decreto-Lei 7.586, de 1945, do fim da ditadura do Estado Novo, devolveu os poderes à Justiça Eleitoral, que haviam sido suspensos durante o regime, e passou a reconhecê-la como parte do Judiciário. Este texto ficou conhecido como “Lei Agamenon”, em referência ao então ministro da Justiça, Agamenon Magalhães.
- República Populista: Com a redemocratização do país, a Lei 1.164, de 1950, regulamentou a criação e o funcionamento dos partidos políticos e criou a cédula única para votação.
Hoje, o Código de 1965 continua sendo a base do sistema eleitoral brasileiro, mas é complementado por outras leis importantes. Entre elas estão:
- Lei das Inelegibilidades, de 1990
- Lei Orgânica dos Partidos Políticos, de 1995
- Lei Geral das Eleições, de 1997
- Lei da Ficha Limpa, de 2010
O TSE também publica resoluções específicas para cada eleição, com regras que se adaptam ao momento político e social do país.
Entre as mudanças mais recentes e relevantes, o pesquisador da UnB Ademar Costa Filho destaca duas alterações feitas no texto do Código a partir de 2021: a criminalização da perseguição a candidaturas femininas e a punição de ações judiciais com motivação exclusivamente eleitoral contra candidatos sabidamente inocentes.
— A gente tem aí um recado claro de redução do assédio contra as candidatas, que é a promoção das candidaturas femininas. Ainda que essa ideia esteja na Lei das Eleições, a criminalização no Código Eleitoral traz um recado importante.
Sede do TSE, em Brasília: Código de 1965 ampliou poderes da corte para organizar eleições
Roque de Sá/Agência Senado
Apesar de sua relevância no cenário eleitoral, a lei de 1965 envelheceu. O senador Plínio Valério (PSDB-AM) reconhece que o Código Eleitoral cumpriu seu papel em um momento importante da história do Brasil. A lei garantiu que o poder passasse, de fato, para quem o detém de direito: o povo. A partir dalí, o voto se tornou o principal instrumento para decidir os rumos do país.
Para Plínio, porém, a lei sexagenária está “ultrapassada” e não atende mais às necessidades atuais. Na visão do senador, o texto precisa ser substituído por uma legislação mais atualizada.
— Todo código, quando traça normas, quando fala do que é possível e do que não é, é muito bom. Só que está defasado. [O Código Eleitoral] foi importante enquanto durou, agora ele com certeza está obsoleto.
O pesquisador Costa Filho concorda com o senador. Ele explica que, hoje, o Código cumpre um papel mais administrativo e criminal do que regulatório. Para ele, é essencial um novo texto que coloque o eleitor no centro do processo e reforce a democracia. O jurista defende uma legislação atualizada, voltada à promoção da cidadania, que preserve a estrutura da Justiça Eleitoral e garanta os direitos do voto.
Plínio: Código Eleitoral de 1965 teve papel histórico, mas ficou obsoleto e precisa ser substituído
Geraldo Magela/Agência Senado
Novo Código
Sob esta perspectiva, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) discute atualmente a proposta de um novo Código Eleitoral (PLP 112/2021). Relatada pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI), ela reúne em uma única norma toda a legislação eleitoral e partidária, somando quase 900 artigos, com objetivo de dar mais estabilidade jurídica, racionalidade e organicidade às eleições.
Em entrevista à Agência Senado, Marcelo Castro observou que um dos problemas da atual legislação é ser esparsa e diversificada, o que dificulta a compreensão por parte da população e provoca inseguranças e incertezas. Para ele, chegou o momento de o país ter uma norma mais moderna.
— A gente espera que, com essa consolidação, a gente não precise mais ficar fazendo modificações a toda eleição. Colocamos regras também para que o TSE não venha a todas as eleições fazer resoluções que terminam sendo novas legislações sobre o sistema eleitoral. Esperamos que agora a gente possa ter um instrumento estável, duradouro, que possa trazer paz e, sobretudo, segurança nas eleições.
Para que possa valer nas eleições de 2026, quando a população escolherá presidente, governadores, deputados e senadores, o texto do novo Código Eleitoral precisa ser sancionado e estar em vigor até 3 de outubro deste ano, data que marca um ano antes do primeiro turno das eleições.
Castro: projeto de novo Código traz mais estabilidade e segurança às eleições
Saulo Cruz/Agência Senado
Avanços no tempo
Apesar de criticar as constantes alterações, Castro apontou mudanças que, ao longo das últimas décadas, foram importantes para a legislação eleitoral brasileira. A principal seria o combate à chamada “hiperfragmentação partidária”, que levou a Brasil a já ter tido 27 legendas com representação no Parlamento ao mesmo tempo.
— Em 2017, nós aprovamos a lei que proíbe as coligações partidárias e instituímos uma cláusula de desempenho progressiva para o partido que não cumprir [um mínimo de votos]. Ele perde o Fundo Partidário, perde o tempo de televisão. Isso para diminuir a quantidade de partidos, concentrar mais os partidos e fortalecê-los.
Outro avanço destacado pelo senador foi a criação do sistema de federações partidárias, que permite a união de partidos com afinidade ideológica para atuarem como uma única bancada. Ele também aponta como conquistas o incentivo à participação de mulheres e pessoas negras na política, com financiamento específico para essas candidaturas, e a aprovação da Lei da Ficha Limpa.
Material de campanha em dia de eleições: para Castro, cláusula de desempenho foi avanço
Edilson Rodrigues/Agência Senado
Mulheres na política
Uma das principais inovações que novo Código pode trazer é a criação de uma cota mínima de 20% de cadeiras para mulheres em todos os parlamentos do país. Segundo o senador, essa medida terá um impacto profundo na sociedade, ao garantir a participação ativa das mulheres nos debates políticos e nas decisões que moldam o futuro do Brasil.
Atualmente, os partidos não podem preencher mais do que 70% da sua lista para cargos de eleição proporcional (deputados federais, estaduais e distritais e vereadores) com um único gênero. Na prática, isso significa uma cota de 30% para candidaturas de mulheres nessas eleições. A proposta do novo Código avança ao instituir vagas reservadas diretamente na composição das casas legislativas, e não apenas na corrida eleitoral.
A legislação de 1965 foi um ponto de partida para conquistas importantes das mulheres na política. A igualdade no alistamento eleitoral entre homens e mulheres só foi possível a partir dela, porque, até aquele ano, as mulheres enfrentavam a condição de incapacidade legal para praticarem atos da vida civil sem a autorização dos maridos.
O avanço é reconhecido pela senadora Augusta Brito (PT-CE), que lembra que a norma abriu espaço para a criação de instrumentos como a cota de gênero nas candidaturas e a obrigatoriedade de repasse de recursos para campanhas femininas. A senadora acredita que, sem essa estrutura legal, a participação das mulheres na política hoje seria ainda mais desigual.
— Como mulher, avalio que avançamos muito, mas ainda precisamos consolidar instrumentos que garantam a participação efetiva das mulheres na política. Em um país em que a maioria da população é feminina, não faz sentido termos um Parlamento ainda tão masculino. Atualizar o Código é parte desse desafio de fazer a democracia refletir melhor a diversidade do povo brasileiro.
Augusta: sem medidas para candidaturas femininas, presença das mulheres na política seria ainda menor
Geraldo Magela/Agência Senado
O tratamento dado à participação feminina no projeto de atualização do Código, porém, vem sendo ponto de divergência entre os parlamentares. O relatório de Marcelo Castro prevê que a reserva de cadeiras vigore, inicialmente, por um período de 20 anos. Durante esse tempo, ficariam suspensas as punições aos partidos que descumprissem a cota de candidaturas.
Procuradora Especial da Mulher no Senado, a senadora Zenaide Maia (PSD-RN) afirma que esse modelo coloca em risco conquistas importantes, como o direito de disputar cargos em condições mais justas dentro dos partidos. Zenaide critica a ideia de trocar essas garantias por uma cota fixa de cadeiras. Para ela, isso manteria o domínio masculino nas esferas do Legislativo por pelo menos mais duas décadas.
— A bancada feminina no Senado não abre mão nem do mínimo de 30% de candidaturas femininas obrigatórias nos partidos políticos nem da destinação de 30% de recursos públicos de financiamento eleitoral para custear a campanha eleitoral dessas candidatas — garante.
A senadora alerta para o risco de retrocessos nos direitos políticos das mulheres, mesmo quase 100 anos após a conquista do direito ao voto. Ela lembra que, apesar de serem a maioria da população brasileira e representarem mais de 50% do eleitorado, as mulheres ainda enfrentam barreiras para ocupar espaços de poder.
Zenaide: suspensão da punição a partidos que não cumprirem cotas de mulheres é retrocesso
Roque de Sá/Agência Senado
Outros temas
A proposta do novo Código Eleitoral também trata de temas como inelegibilidade, quarentena eleitoral para membros de algumas carreiras públicas, combate à desinformação, voto impresso, auditoria das urnas eletrônicas, regras para partidos e federações, crimes eleitorais, propagandas políticas e campanhas por meio da internet.
Para o pesquisador da UnB Ademar Costa Filho, o projeto está em sintonia com os desafios atuais, ao tratar de temas como internet, redes sociais e critérios de inelegibilidade. Ele também destaca que a nova norma precisa enfrentar a tarefa de ampliar a participação política, que encontra obstáculos no atual formato de financiamento de campanhas.
— O sistema de financiamento público, como a gente tem hoje, não integra novas minorias ao processo político. Por quê? Porque o dinheiro público vai para aqueles que já estão no poder. Mais que isso, você não tem como buscar recursos para uma campanha eleitoral fora do poder político. A meu ver, precisa-se mudar drasticamente o sistema de financiamento, revogar esse financiamento exclusivamente público e criar um sistema em que o dinheiro público seja proporcional ao apoiamento financeiro que o candidato consiga na população — avalia.
Regulação da auditoria das urnas é um dos temas presentes na proposta do novo Código Eleitoral
Antonio Augusto/TSE
Divergências
O senador Sergio Moro (União-PR) é um dos que afirmam ter ressalvas em relação à proposta do novo Código Eleitoral. Uma das principais preocupações é a mudança na contagem do prazo de inelegibilidade, que, segundo ele, enfraquece a Lei da Ficha Limpa.
Atualmente, a lei determina que uma pessoa condenada criminalmente só pode se candidatar oito anos após o cumprimento da pena. O novo texto mantém o prazo, mas propõe que ele passe a ser contado a partir da data da condenação, efetivamente encurtando o período de inelegibilidade.
Outro ponto criticado por Moro é a criação de uma quarentena de dois anos para policiais, juízes, promotores e mebros das Forças Armadas que desejem disputar eleições. Para o senador, esse dispositivo prejudica agentes da lei.
— Uma reforma que facilita a vida de criminosos para concorrerem na eleição e dificulta a vida de agentes da lei não é aceitável. O Código Eleitoral é importante, a consolidação e a transição é importante, mas não faz nenhum sentido que medidas como essa sejam propostas.
Moro: mudança no prazo de inelegibilidade enfraquece Lei da Ficha Limpa
Edilson Rodrigues/Agência Senado
Já o senador Plínio Valério acredita que alguns pontos ainda precisam de mais discussão, como o veto ao voto impresso e a proposta de alteração do mandato dos senadores para dez anos (hoje são oito).
— O nosso papel é primordial, porque nós representamos a população. Isso é para as eleições, onde a população vai decidir. Como representante do povo, a gente tem que pensar no povo. O que o povo quer? Liberdade para votar, para escolher seus representantes.