Há exatamente 40 anos começava um processo político que determinaria os rumos do Brasil até os dias de hoje: a convocação da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição de 1988.
Em 27 de novembro de 1985, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 26, que determinou a criação da Constituinte, a ser formada por senadores e deputados com a missão de redigir a Carta democrática que sepultaria a ordem política, econômica e social imposta pela ditadura militar (1964-1985).
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 43/1985 havia sido enviada ao Congresso cinco meses antes pelo presidente José Sarney, cumprindo uma das promessas de campanha de Tancredo Neves — eleito presidente, mas morto sem tomar posse. Em obediência à emenda aprovada, os trabalhos da Constituinte começaram em 1º de fevereiro de 1987.
Entre a convocação e a instalação, houve 14 meses de intensa movimentação, incluindo a eleição dos senadores e deputados constituintes, e a eliminação de boa parte do “entulho autoritário”, leis da ditadura que poderiam comprometer o processo constitucional. Em 3 de outubro de 1988, nasceu a chamada Constituição Cidadã.
A memória coletiva costuma retratar a convocação da Constituinte como um episódio histórico pacífico — mas não foi.
O cientista político Antônio Sérgio Rocha, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), explica que, nos bastidores, grupos progressistas e forças conservadoras ligadas ao recém-extinto regime militar travaram uma disputa acirrada pelo controle da Constituinte, cada qual tentando moldar a Constituição que definiria o futuro do país:
— No início, tudo indicava que os conservadores venceriam, pois conseguiram definir as regras básicas da Constituinte. Mas o jogo virou graças à ação da ala progressista do PMDB e à pressão dos movimentos sociais nos corredores do Congresso.
Desde 2008, Rocha coordena a pesquisa Memória da Constituinte, que, para reconstruir o processo político que culminou na Constituição de 1988, já entrevistou mais de 150 protagonistas dessa história, como Nelson Jobim, Bernardo Cabral e Jarbas Passarinho. A investigação conta com a participação de diferentes universidades e é financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Leia a seguir a entrevista com o cientista político, que revela os bastidores dessa disputa.
Promulgação da Constituição de 1988 no plenário da Câmara; no destaque, o cientista político Antônio Sérgio Rocha
(Arquivo da Câmara dos Deputados e Reprodução/FGV)
Era natural que uma Constituinte fosse convocada logo após o fim da ditadura militar?
Não era algo garantido nem natural. No fim dos anos 1970, na chamada distensão política, houve um embate intenso — e pouco conhecido — entre os juristas ligados ao regime e aqueles alinhados às forças progressistas. Para os progressistas, uma Constituinte era indispensável à redemocratização do país. Um dos principais apoiadores dessa ideia foi o presidente nacional da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], Raymundo Faoro, que defendia uma Constituinte como a forma de devolver a legitimidade ao regime político, perdida na sequência do golpe de 1964.
Os defensores do regime militar, por sua vez, sustentavam que bastaria uma simples reforma constitucional. Segundo eles, a Constituição de 1967, praticamente reescrita pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969, continha “virtualidades democráticas” e deveria ser preservada, desde que seus excessos fossem removidos.
Essa batalha jurídica também foi travada no meio político?
Não foi apenas um “torneio intelectual” de juristas. A necessidade de uma Constituinte fez parte de todos os manifestos emitidos pelo MDB, o partido de oposição à ditadura, a partir de 1971, mas só ganhou de vez o meio político a partir das eleições gerais de 1982, quando a ditadura perdeu a maioria na Câmara dos Deputados — ficando tolhida da iniciativa legislativa — e dez estados passaram a ser governados pela oposição, gerando no país uma espécie de diarquia [o poder exercido por dois grupos diferentes]. Essa nova correlação de forças permitiu que a Constituinte efetivamente entrasse na agenda da transição democrática.
A discussão ganhou ainda mais tração após a derrota das Diretas Já, em 1984, quando políticos e juristas de esquerda e movimentos sociais concluíram: “Perdida a batalha das diretas, agora não podemos, em hipótese alguma, perder a guerra da Constituinte”. No fim das contas, os progressistas foram bem-sucedidos. No fim de 1985, o Congresso aprovou a PEC convocando a Constituinte para o início de 1987.
Mensagem do presidente Sarney que acompanhou a PEC da convocação da Constituinte enviada ao Congresso
(Arquivo do Senado)
Convocada a Constituinte, as forças remanescentes da ditadura aceitaram a derrota?
A disputa continuou e foi ainda mais intensa. Após a posse de Sarney, as forças do regime agiram para que a futura Constituinte fosse o mais conservadora possível. Isso ocorreu no momento de estabelecer os seus contornos: se seria originária ou derivada, exclusiva ou congressual e se partiria do zero ou de um anteprojeto do governo.
Dessa vez, foram as forças do regime que tiveram sucesso. Convocada a Constituinte por meio de PEC, isso praticamente já decidiu que ela seria derivada da ordem constitucional em vigor, provinda das duas Cartas militares [de 1967 e 1969]. Além disso, a PEC estabeleceu explicitamente que ela seria congressual e, pouco antes, Sarney havia criado uma comissão de especialistas encarregada de elaborar um anteprojeto constitucional. Juntas, conforme os planos das forças do regime militar, essas três características evitariam qualquer mudança abrupta ou drástica na estrutura política, econômica e até social do Brasil. Para os conservadores, a Constituição deveria limitar-se a organizar o Estado e estabelecer os direitos civis e políticos.
Como consequência, um clima de pessimismo e desalento se instalou nos setores progressistas, já que, depois de toda a luta para fazer a transição democrática, o que se vislumbrava era uma Constituição liberal-conservadora, nos moldes da Carta de 1946 — liberal por restringir a intervenção do Estado na economia e conservadora por prover mais salvaguardas ao Estado do que direitos de cidadania ativa à população. A situação ficou ainda mais desanimadora depois da eleição dos senadores e deputados constituintes, em 1986: cerca de 40% dos eleitos haviam pertencido à Arena, o partido de sustentação da ditadura.
De que forma, concretamente, uma Constituinte com essas três características — derivada, congressual e com anteprojeto — favoreceria os setores conservadores remanescentes da ditadura militar?
Essas três características engessavam o trabalho dos constituintes. Sendo derivada, e não originária, eles não poderiam inovar em diversos temas nem contrariar a ossatura constitucional instituída pelas duas Cartas da ditadura. Os juristas ligados ao regime, como Afonso Arinos, diziam que a Constituinte originária era um atributo exclusivo das revoluções, que modificam a ordem política por completo e, como consequência, exigem a modificação integral da ordem constitucional — o que não era o caso brasileiro, cuja mudança havia sido “lenta, gradual e segura”.
Sendo congressual, e não exclusiva, os termos da nova Constituição seriam decididos pelos senadores e deputados. Isso teria implicações consideradas negativas. Os eleitos seriam selecionados pelo sistema partidário vigente, o que gerava um forte viés favorável à manutenção da estrutura política existente. Muitos deles, vale lembrar, eram antigos apoiadores do autoritarismo. Com isso, haveria uma tendência natural de os parlamentares a evitar mudanças profundas na ordem política, já que, em princípio, eram diretamente beneficiados por ela. Além disso, temia-se que legislassem em causa própria na Constituição. Se fosse uma Assembleia exclusiva, totalmente separada do Senado e da Câmara, os constituintes não estariam sujeitos ao filtro da ordem institucional da época e teriam liberdade para se dedicar apenas ao debate e à redação da Constituição. Os trabalhos constituintes, assim, atrairiam pessoas de fora do establishment político e menos sujeitas às pressões partidárias, como líderes populares, personalidades da cultura e das artes, sindicalistas e até membros eclesiásticos — algo semelhante ao que ocorreu na Itália em 1947.
Por fim, tendo um anteprojeto, a Constituinte ficaria manietada desde o início, já que os constituintes acabariam trabalhando dentro das balizas estabelecidas pela “comissão de notáveis” instituída pelo governo.
De um lado, José Sarney e Ulysses Guimarães apoiaram uma Constituição moderada; do outro, Mário Covas agiu por uma Carta progressista
(Arquivo/Agência Brasil, Antonio Cruz/Arquivo/Agência Brasil)
Mas o anteprojeto elaborado pela comissão de notáveis que Sarney criou, conhecida como Comissão Arinos, foi desprezado, e a Constituinte trabalhou sem um documento preliminar.
Sim. Precisamos lembrar que Sarney era oriundo do regime. Ele havia presidido a Arena e o PDS [partidos de sustentação da ditadura] antes de se transferir para o PMDB e compor a chapa presidencial com Tancredo. O presidente formou a comissão com muitos conservadores. O escolhido para presidi-la foi Afonso Arinos, um político notoriamente conservador, que fez parte da ala golpista da antiga UDN, que conspirou continuamente contra a democracia instaurada em 1946. A presença maciça de conservadores na chamada Comissão Arinos gerou profunda inquietação nos meios progressistas do país.
As coisas, no entanto, acabaram desandando em relação às pretensões do governo Sarney. Em nossas pesquisas, analisando as atas das reuniões e audiências da Comissão Arinos, verificamos que os conservadores participaram muito pouco dos trabalhos, ao contrário dos progressistas, que, assíduos e persistentes, acabaram conseguindo um anteprojeto voltado para os direitos sociais, bem mais à esquerda do que Tancredo e Sarney teriam planejado.
Os integrantes conservadores tomaram um susto com o resultado, reclamaram e tentaram votar o anteprojeto novamente, mas não tiveram sucesso. Um deles, o jurista Ney Prado, publicou logo em seguida o livro Os Notáveis Erros dos Notáveis, atacando e buscando desmoralizar o relatório final da Comissão Arinos.
Esse anteprojeto acabou apanhando de todos os lados. Os conservadores o consideraram quixotesco e inviável no Brasil, mais adequado para a realidade de um país como a Dinamarca. Os progressistas, por sua vez, rejeitaram a tentativa de tutelar os constituintes, que, no limite, seriam reduzidos a meros carimbadores das formulações daquele grupo de “notáveis” — termo que usavam com ironia.
Sarney ignorou o anteprojeto, que nunca foi enviado à Constituinte e passou a dormitar numa gaveta do Ministério da Justiça. O descarte do texto progressista da Comissão Arinos representou, portanto, uma vitória para as forças do antigo regime.
Não foi, contudo, um trabalho perdido. Analisando as atas da Constituinte e entrevistando políticos que participaram do processo, constatamos que, quando alguma comissão ou subcomissão não tinha uma ideia clara de como abordar determinado assunto, os constituintes recorriam ao anteprojeto da Comissão Arinos como ponto de partida. Muitos dos direitos civis contidos na Constituição de 1988 eram praticamente idênticos aos previstos no anteprojeto.
Anúncio de jornal noticia debate na TV em 1986 a respeito do anteprojeto da Comissão Arinos
(Tribuna da Imprensa/Biblioteca Nacional Digital)
Tancredo também desejava uma Constituição conservadora?
Tancredo era um político conciliador e, na melhor das hipóteses, de centro. A ditadura militar só permitiu que ele vencesse no Colégio Eleitoral por causa disso, o que dava aos generais a segurança de que não haveria revanchismo contra eles no regime democrático. Aparentemente, considerando as pistas e evidências que localizamos nas nossas pesquisas, Tancredo nunca cogitou convocar uma Constituinte originária, exclusiva e sem anteprojeto. Uma das pistas foi a encomenda de um esboço de Constituição que ele teria feito ao jurista Clóvis Ramalhete, que na ditadura havia sido consultor-geral da República e ministro do Supremo Tribunal Federal.
Já os termos da PEC da convocação da Constituinte assinada por Sarney foram redigidos por Célio Borja, ex-integrante da UDN que havia sido presidente da Câmara dos Deputados na ditadura, e arrematados por Marco Maciel, o último governador de Pernambuco indicado pelo regime militar, antes da volta das eleições diretas para governador em 1982.
Vê-se, portanto, que o desenho da Constituinte foi todo arquitetado dentro do regime. E a morte de Tancredo não abalou a tranquilidade dos militares, já que Sarney era uma figura íntima do establishment do regime autoritário.
O deputado Ulysses Guimarães, presidente do PMDB e da Assembleia Nacional Constituinte e ferrenho adversário da ditadura, não agiu para evitar que a Constituição saísse ao gosto das forças do regime militar?
Na comissão mista instalada pelo Congresso Nacional para analisar e votar a PEC de convocação da Constituinte, seu relator foi o deputado Flávio Bierrenbach [PMDB-SP], político ativo na luta pela redemocratização. Ele redigiu um substitutivo prevendo uma Constituinte originária, exclusiva e sem anteprojeto. Na última audiência pública da comissão mista, num gesto teatral, ele levou uma mala contendo 70 mil cartas e telegramas de todo o Brasil e as despejou diante dos constituintes. Eram mensagens que mostravam que a população desejava uma Constituinte com essas características.
Aos 45 minutos do segundo tempo, porém, Ulysses destituiu Bierrenbach, e entregou a relatoria ao deputado Valmor Giavarina [PMDB-PR], que já tinha um parecer pronto estabelecendo uma Constituinte congressual, e não exclusiva — exatamente de acordo com o desejo do governo e dos conservadores.
E por que Ulysses agiu dessa forma? Aparentemente, foi por força da Aliança Democrática, a sociedade política composta pelo PMDB de Ulysses e pelo PFL, partido de perfil conservador formado por dissidentes do PDS [partido de sustentação da ditadura], para formar a chapa Tancredo-Sarney. Como presidente do PMDB e da Constituinte, ele agiu não apenas conforme o desejo das diferentes correntes de seu próprio partido, mas também de acordo com o desejo do PFL, que não queria uma Constituição progressista.
Metalúrgicos fazem manifestação no Congresso em 1988: pressão popular inesperada definiu rumos da Constituinte
(Arquivo da Câmara dos Deputados)
Apesar de todas essas manobras, a Constituição de 1988 não saiu conservadora. O que aconteceu?
As forças conservadoras, em boa medida capitaneadas por Sarney, se prepararam minuciosamente para controlar o processo de redemocratização, incluindo a nova Constituição, com mudanças apenas cosméticas para, no fundo, manter a ordem do antigo regime. No entanto, surgiram no caminho dois fatores com que as forças do regime e a própria Aliança Democrática não contavam e que mudaram o rumo dos acontecimentos.
O primeiro foi a escolha do deputado Mário Covas para ser o líder do PMDB na Constituinte. Ele pertencia à ala progressista do partido e selecionou deputados com perfil parecido ao seu como relatores nas principais comissões e subcomissões temáticas. Covas teve participação direta no término da Aliança Democrática, alijando o PFL como parceiro político do PMDB.
O segundo fator foi a pressão popular. Nos 20 meses dos trabalhos, os movimentos populares irromperam Constituinte adentro, e milhões de pessoas transitaram pelos corredores do Congresso Nacional. Na década de 1970, quando ainda não havia uma Constituinte no horizonte, os movimentos sociais começaram a se articular com vistas a influenciar a Constituição democrática que, apostavam eles, viria mais cedo ou mais tarde. Ecologistas, médicos sanitaristas e militantes do movimento negro foram alguns desses grupos. Quando o Centrão ensaiou uma reviravolta na Constituinte, por exemplo, as pessoas que ocupavam as galerias da Constituinte jogaram moedas no Plenário. Os políticos conservadores não imaginavam as massas populares dentro da Constituinte fazendo pressão, e isso fez toda a diferença na Constituição que seria promulgada.
Aliás, o Centrão, que nasceu do impulso de líderes empresariais insatisfeitos com os trabalhos da Constituinte, contou com integrantes do PMDB mais à direita, que se sentiam isolados por Covas e começaram a conspirar com o PFL por uma Constituição conservadora. Para selar a união desses descontentes, o deputado Ricardo Fiuza [PFL-PE] criou um grupo chamado Centro Democrático, que ficou conhecido como Centrão. Naquela época pós-ditadura, as pessoas tinham vergonha de admitir que eram de direita e, por isso, se diziam de centro. Hoje, ao contrário, ser de direita virou sinal de popularidade, que rende votos.
O que houve, portanto, foi um paradoxo. A Constituinte foi toda preparada para atender aos desejos das forças conservadoras e oriundas do regime militar, mas, assim que ela começou a funcionar, tudo foi se encaminhando a favor dos progressistas, que acabaram moldando a maioria dos termos da Constituição de 1988.
Por que é importante conhecer hoje a história da Constituinte e da Constituição?
Precisamos saber que houve um momento inédito na nossa história em que todas as forças políticas, mesmo as antagônicas, apostaram na construção de um regime democrático. Basta lembrar que até mesmo o grande empresariado, coluna mestra da ditadura, assinou um manifesto público em 1977, o Manifesto dos Oito, pedindo a restauração da democracia. E, em 1979, o filósofo Carlos Nelson Coutinho publicou o ensaio A democracia como valor universal, que foi decisivo para que parte relevante das esquerdas fizesse as pazes com a democracia representativa.
Como parte dessa cultura democrática, todos, direita e esquerda, aceitaram as regras do jogo da Constituinte. Isso significa que os conservadores, apesar de terem perdido aquela batalha campal, não rechaçaram o resultado nem tentaram virar o jogo. Os diferentes grupos entenderam que, se perderam agora, na próxima rodada poderão ganhar, o que foi decisivo para o sucesso da Constituinte e da Constituição.
Essa é uma característica que a política brasileira perdeu nos últimos 30 anos. A direita tem insuflado o extremismo e a polarização, apostando contra a Constituição, contra as instituições, contra a negociação política, contra as regras do jogo, contra a democracia. O Brasil de hoje carece dessa cultura democrática que estava muito viva e pulsante 40 anos atrás.
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