Há algo profundamente inquietante no capítulo 6 do Evangelho de João. Após realizar um milagre extraordinário — a multiplicação de pães e peixes para alimentar uma multidão faminta — Jesus, em vez de se beneficiar da popularidade que isso lhe traria, decide confrontar a motivação do povo. Suas palavras cortam como uma espada:
“Na verdade, na verdade vos digo que me buscais, não pelos sinais que vistes, mas porque comestes do pão e vos saciastes” (João 6:26, ARC).
Essa frase revela um problema antigo, mas tragicamente atual: a redução do Evangelho a um meio para alcançar fins terrenos. Jesus sabia que a busca da multidão não era pela verdade, nem pelo Reino, nem pela glória de Deus — era pelo estômago. Era o desejo de repetir a bênção, e não o reconhecimento do Abençoador.
Por que Jesus não veio para ser apenas um “milagreiro”, um fornecedor celestial de benefícios terrenos, e como essa visão distorcida continua a seduzir muitos púlpitos e multidões até hoje?
I. A Teologia do Milagre em João 6: Sinal ou Serviço de Buffet?
O milagre da multiplicação é relatado por todos os quatro evangelistas, o que mostra sua importância (Mt 14.13-21; Mc 6.30-44; Lc 9.10-17; Jo 6.1-14). Porém, apenas João chama os milagres de Jesus de “sinais” (gr. semeia), e isso faz toda a diferença.

O que é um sinal?
Um sinal aponta para algo além de si mesmo. Ele não é o fim, mas o meio. A multiplicação dos pães não é o objetivo da missão de Jesus, mas uma seta que aponta para quem Ele é: o Pão da Vida, o Filho de Deus, o Salvador Eterno.
Jesus rejeita o papel de líder populista ou mágico carismático. Quando tentam fazê-lo rei à força (Jo 6.15), Ele se retira. Por quê? Porque o povo queria um rei de conveniência, não o Rei da Cruz.
II. O Perigo da Fé Utilitarista: Jesus como meio, não como fim
A fé utilitarista é aquela que reduz Deus a uma ferramenta para alcançar algo que, no fundo, amamos mais do que Ele mesmo — saúde, sucesso, casamento, emprego, dinheiro, paz emocional.
Jesus expôs essa motivação oculta quando disse:
“Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela comida que permanece para a vida eterna…” (Jo 6.27).
A fé utilitarista está presente quando dizemos “Deus é bom” apenas quando o exame dá negativo, o emprego aparece ou o aluguel é pago. Mas onde está essa confissão quando a provisão não chega?
Se o que mais amamos em Jesus são os seus presentes e não a sua presença, estamos espiritualmente desnutridos. Milagres podem saciar o corpo, mas só a comunhão com Cristo alimenta a alma.
III. Milagre é bênção, mas não é salvação
O Novo Testamento está repleto de milagres — e cremos neles! Somos pentecostais, e por isso, reconhecemos que o Espírito Santo ainda opera sinais hoje (Mc 16.17-18; At 2.17-21). Contudo, a Escritura também deixa claro que milagre não salva ninguém.
Prova bíblica:
“Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? E em teu nome não expulsamos demônios? E em teu nome não fizemos muitas maravilhas? E então lhes direi: Nunca vos conheci” (Mt 7.22-23).
Milagres podem até ser realizados por quem não tem comunhão com Cristo. É possível viver debaixo de unção e morrer longe da salvação.

IV. O Chamado ao Pão Verdadeiro
Em João 6.35, Jesus deixa claro:
“Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome, e quem crê em mim nunca terá sede.”
O que é comer esse pão?
É crer nEle, depender dEle, se render a Ele, comungar com Ele.
Jesus não nos oferece apenas comida. Ele é a comida. Não veio apenas para nos dar vida — Ele é a vida!
V. O Cristo da Cruz, não do Buffet
Hoje, muitos púlpitos se tornaram bufês espirituais. Servem “pães e peixes” em forma de prosperidade, autoajuda, coaching ungido e “bênçãos sob demanda”. Jesus é mencionado, mas raramente adorado como o Pão da Vida.
Como no tempo de João 6, Ele ainda confronta: “Vocês me procuram pelo pão que perece. Mas quem me ama verdadeiramente, me busca por quem Eu Sou.” A fé bíblica não busca apenas solução de problemas, mas comunhão com o Salvador.
O Clamor do Céu Ainda Ecoa
Jesus multiplica pães, cura, liberta, abre portas e ainda opera maravilhas. Mas acima de tudo isso, Ele se entrega como o verdadeiro pão.
O Evangelho de João nos convida a um banquete eterno, não a uma feira de bênçãos. Busquemos o pão que desceu do céu, não porque Ele sacia o estômago, mas porque Ele transforma o coração.“Quem comer deste pão viverá para sempre” (Jo 6.51)