“Desde os primórdios, até hoje em dia”. Parafraseando a música do grupo Titãs, o homem ainda traz “o cão em sua companhia”. Sim, mudei a letra da música, mas sem fugir do contexto de que o comportamento é milenar: o cachorro acompanha o homem na caça, no esporte, na investigação e na companhia – considerada uma das mais fiéis.
Por isso, no mês em que celebramos o Dia do Cachorro (26 de agosto), convidamos nossos leitores para uma reflexão aprofundada sobre os pilares que sustentam a saúde do cão na clínica veterinária moderna. E começamos por uma das frentes mais relevantes – e, muitas vezes, negligenciadas – da medicina preventiva e terapêutica: a alimentação.
A de Alimentação
A nutrição clínica no bem-estar e na longevidade canina tem papel fundamental. De acordo com o médico-veterinário Miguel Bonachi Roca Junior, diretor da Animal Doctor’s, clínica veterinária de referência em Sorocaba (SP), a nutrição veterinária avançou significativamente nos últimos anos, especialmente no que diz respeito à individualização do manejo alimentar.
A alimentação natural formulada por nutrólogos veterinários tem ganhado espaço em casos como obesidade, doenças renais, hepáticas, endócrinas e dermatopatias.
“Tenho pacientes que se alimentam exclusivamente com dietas formuladas por nutrólogos. São receitas específicas, com controle de proteínas, gorduras e, quando necessário, restrição de carboidratos. Essa abordagem é muito indicada para cães com doenças crônicas”, explica o profissional.
Apesar do crescimento das opções de alimentação natural, o veterinário reforça que as rações super premium e linhas terapêuticas industriais continuam sendo essenciais no arsenal clínico, principalmente pela padronização, praticidade e segurança nutricional que oferecem.
“A linha grain-free com proteína hidrolisada ainda é o carro-chefe no manejo de atopia, por exemplo. Prescrevo bastante e meus pacientes acançam bons resultados clínicos”, relata.
Além disso, o médico-veterinário observa que o mercado tem evoluído na eliminação de transgênicos, glúten e conservantes nas formulações, atendendo à crescente demanda por produtos mais naturais.
Entre os obstáculos mais frequentes está a recusa alimentar, principalmente em dietas terapêuticas. Miguel compartilha algumas estratégias simples e eficazes adotadas na rotina clínica: “Muitas vezes, só trocar a marca já resolve. Em outros casos, recomendo usar um caldo de frango caseiro, sem sal ou tempero, para umedecer a ração. Evito sachês e latas industrializadas ao máximo – só uso como último recurso.”
O médico-veterinário é claro: qualquer alteração alimentar deve ser feita com critério e respaldo clínico. Doenças crônicas e síndromes metabólicas exigem uma avaliação individualizada, levando em conta não apenas o diagnóstico, mas também o porte, idade e histórico do paciente.
“Na prática, cada cão é único. Um dos meus cães é hepatopata e come uma ração específica. Os outros, saudáveis, seguem com uma dieta super premium convencional. O importante é reconhecer quando a alimentação passa de suporte a ferramenta terapêutica”.
A médica-veterinária Juliana Cirillo, especialista em oncologia veterinária, destaca a importância de adequar a alimentação conforme a fase da vida e condições clínicas do animal.
“As recomendações nutricionais variam de acordo com a idade, escore de condição corporal e presença de comorbidades do paciente. Por volta dos 10 anos, os cães apresentam alterações corporais relevantes: perda de massa muscular e aumento de gordura corporal. Isso exige uma dieta com proteína de alto valor biológico na quantidade certa”, orienta.
Em cães obesos, a recomendação é clara: alimentação hipocalórica e rica em fibras, para promover saciedade. Já para cães com doenças crônicas, o mercado atual oferece diversas opções adaptadas — como dietas com restrição de fósforo e proteína para nefropatas, fórmulas específicas para diabéticos, e dietas com proteína hidrolisada para casos de alergia alimentar ou dermatopatias.
Juliana também destaca os nutracêuticos com maior respaldo científico na prática clínica atual. Entre eles, a condroitina e a glucosamina seguem como clássicos no suporte articular, sendo especialmente indicados para cães idosos ou com displasia.
O colágeno tipo II não desnaturado (UC-II) é outro composto que vem ganhando espaço por sua ação protetora das cartilagens, além de contribuir para a redução da dor e melhora da mobilidade dos animais.
Já o ômega-3 se destaca por sua ampla aplicabilidade, com indicações que vão desde arritmias cardíacas – como nas cardiomiopatias comuns em Boxers – e dislipidemias, frequentemente observadas em Schnauzers, até quadros de osteoartrite, doença renal crônica e caquexia oncológica.
“O papel do ômega-3 na oncologia veterinária tem sido cada vez mais valorizado, principalmente na preservação da qualidade de vida e apetite dos pacientes”, informa Juliana.

B de Bem-estar
Cada vez mais inseridos na rotina humana — e, muitas vezes, longe dos estímulos naturais da espécie —, é papel do médico-veterinário clínico reconhecer quando o comportamento do animal é, na verdade, um alerta. Para Miguel Bonachi Roca Junior, o bem-estar é tão clínico quanto físico.
“Durante as consultas, que duram cerca de 40 minutos a uma hora, conseguimos observar o comportamento do animal e ouvir o relato completo da família. Muitas vezes, os sinais de desconforto emocional estão ali, mas disfarçados de ‘mania’ ou ‘temperamento difícil’”, explica.
Além dos relatos colhidos em anamnese, o veterinário observa pistas durante os banhos, tosas e exames de rotina. Sintomas como lambedura compulsiva de patas, mordeduras, agitação, latido excessivo, medo exagerado e até mutilações sinalizam que o cão pode estar vivendo um estado crônico de estresse ou ansiedade.
“Quando excluímos causas alérgicas, dermatológicas ou infecciosas, e mesmo assim o cão insiste nesses comportamentos, partimos para investigar a causa emocional. É comum hoje observarmos síndromes de solidão, ansiedade de separação e até quadros compulsivos, comparáveis ao TOC humano.”
Ele ressalta que muitos dos problemas comportamentais são consequência de uma desconexão entre o modo de vida canino e o ambiente humano.
“Fomos ‘humanizando’ o cachorro: dorme na cama, fica o dia inteiro sozinho, não convive com outros cães. E ele, biologicamente, continua sendo um animal de matilha. Essa quebra de instinto cria desequilíbrios que se manifestam em doenças emocionais”, diz e observa, por exemplo, que cães que vivem em grupo, com hierarquia definida e espaço para interações naturais, tendem a apresentar menos problemas de ansiedade e compulsão.
O especialista relembra ainda o impacto comportamental da pandemia e do retorno à rotina normal. Durante o isolamento, muitos pets estranharam o excesso de presença. Já no retorno à normalidade, sofreram por ficarem novamente sozinhos.
“Atendi muitos cães que passaram a comer fezes ou se automutilar. Em vários casos, precisei usar ansiolíticos ou antidepressivos veterinários, sempre com suporte comportamental.”
Segundo Miguel, sinais como lambedura excessiva das patas sem causa dermatológica, arrancamento de pelos ou unhas, comportamentos compulsivos (como coprofagia), agressividade súbita, latidos persistentes, medo exagerado diante de estímulos simples e alterações alimentares sem justificativa clínica podem indicar sofrimento emocional ou estresse crônico em cães.

“O veterinário precisa estar atento não só à ficha clínica, mas também ao comportamento. Muitas vezes, o diagnóstico começa no olhar e na escuta. Cada vez mais, a clínica médica exige uma abordagem integrativa entre corpo e mente.”
Para a médica-veterinária Juliana Cirillo, especialista em Oncologia Veterinária, o bem-estar também passa pela detecção precoce da dor crônica — condição frequentemente silenciosa, mas que compromete drasticamente a qualidade de vida.
“A dor crônica pode estar presente em diferentes cenários e é mais comumente observada nos distúrbios neuro-locomotores, levando à redução da mobilidade e alterações comportamentais como apatia ou agressividade. Nos pacientes oncológicos, ela é ainda mais prevalente e exige cuidado específico e contínuo”, explica.
Juliana destaca que o check-up anual deve ser completo para permitir uma avaliação realista do bem-estar animal. Isso inclui exames de sangue (hemograma e bioquímico), urina e imagem (ultrassonografia abdominal, radiografia torácica e ecocardiograma).
Além disso, raças predispostas e cães idosos demandam protocolos específicos. “Animais acima de 8 anos devem ser reavaliados a cada seis meses. Já em raças como o Golden Retriever, os check-ups devem começar aos seis anos. Em casos como displasia coxofemoral, a avaliação começa já entre os quatro e seis meses”, orienta.
Confira o artigo completo “A-B-C e Z do melhor amigo do homem”, na íntegra e sem custo, acessando a página 28 da edição de agosto (nº 312) da Revista Cães e Gatos.